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09/05/2021

STF reconhece competência da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho, para julgar vínculo de emprego de motorista autônomo

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em decisão proferida nos autos da Reclamação Constitucional nº 46.356, a competência da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho, para analisar a existência de vínculo de emprego de motorista autônomo.

De forma geral, a Reclamação Constitucional é um instituto jurídico com status constitucional que tem como objetivo a preservação da competência do STF e a garantia da autoridade das suas decisões.

Além de estar regulamentado no Código de Processo Civil de 2015 e pelos artigos 156 e seguintes do Regimento Interno da Corte Suprema do país, encontra-se previsto no artigo 102, inciso I, alínea “l”, da Constituição Federal (CF), que dispõe:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar, originariamente:

(…)

l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;

Da leitura do artigo 102, inciso I, alínea “l”, depreende-se que a Reclamação Constitucional compõe a classe de processos originários do STF, ou seja, é ajuizada diretamente no Tribunal, a quem compete analisar se o ato questionado na ação invadiu, ou não, competência da Corte ou se contrariou alguma de suas decisões.

Após a breve tratativa de alguns aspectos da Reclamação Constitucional, cumpre adentar no caso específico que levou ao reconhecimento, pelo STF, da competência da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho, para julgar vínculo de emprego de motorista autônomo.

Conforme outrora mencionado, o entendimento decorre do julgamento da Reclamação Constitucional nº 46.356, a qual foi ajuizada por uma empresa de transportes e logística que se encontrava no polo passivo da Reclamação Trabalhista nº 0021547-86.2017.5.04.0221.

A reclamatória trabalhista havia sido proposta por um prestador de serviços, motorista autônomo, que atuava em caminhão próprio e estava devidamente inscrito na ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).

A relação existente entre as partes estava amparada em um contrato de “prestação de serviços de transporte e de cargas – autônomo”. O reclamante estava caracterizado como “transportador autônomo de cargas” e a relação entre eles era regulamentada pela Lei 11.442/2007 – que dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração.

A reclamação trabalhista mencionada, porém, ficou sobrestada durante o trâmite da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 48/DF. Com o julgamento da referida ADC, restou confirmada a constitucionalidade da Lei 11.442/2007 e fixado que, uma vez preenchidos os requisitos disciplinados na citada Lei, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista. Eis a ementa:

Direito do Trabalho. Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória da Constitucionalidade. Transporte rodoviário de cargas. Lei 11.442/2007, que previu a terceirização da atividade-fim. Vínculo meramente comercial. Não configuração de relação de emprego. 1. A Lei nº 11.442/2007 (i) regulamentou a contratação de transportadores autônomos de carga por proprietários de carga e por empresas transportadoras de carga; (ii) autorizou a terceirização da atividade-fim pelas empresas transportadoras; e (iii) afastou a configuração de vínculo de emprego nessa hipótese. 2. É legítima a terceirização das atividades-fim de uma empresa. Como já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção. Ao contrário, o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais dentro do marco vigente (CF/1988, art. 170). A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego (CF/1988, art. 7º). Precedente: ADPF 524, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. 3. Não há inconstitucionalidade no prazo prescricional de 1 (um) ano, a contar da ciência do dano, para a propositura de ação de reparação de danos, prevista no art. 18 da Lei 11.442/2007, à luz do art. 7º, XXIX, CF, uma vez que não se trata de relação de trabalho, mas de relação comercial. 4. Procedência da ação declaratória da constitucionalidade e improcedência da ação direta de inconstitucionalidade. Tese: “1 – A Lei 11.442/2007 é constitucional, uma vez que a Constituição não veda a terceirização, de atividade-meio ou fim. 2 – O prazo prescricional estabelecido no art. 18 da Lei 11.442/2007 é válido porque não se trata de créditos resultantes de relação de trabalho, mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o art. 7º, XXIX, CF. 3 – Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”.

Da ementa do julgado, nota-se que o Plenário do Supremo reafirmou sua jurisprudência no sentido de que a terceirização de atividade-fim é lícita e que as empresas de transporte rodoviário podem contratar como prestadores de serviço, sob um contrato de natureza civil, motoristas autônomos que possuam veículo próprio e que cumpram outros requisitos definidos na 11.442/2007.

Após o julgamento da ADC 48/DF, a reclamação trabalhista de nº 0021547-86.2017.5.04.0221 voltou a tramitar e o requerimento da reclamada (empresa) pelo reconhecimento da incompetência da Justiça do Trabalho para analisar aquela ação foi apreciado e indeferido pelo juízo trabalhista, ao argumento de que era competência da Justiça do Trabalho verificar se o reclamante (motorista) é autônomo ou celetista.

A Reclamação Constitucional em comento (nº 46.356) foi ajuizada em face deste despacho. Julgada procedente pelo STF, concluiu-se que o despacho que fixou como competência da Justiça do Trabalho decidir sobre existência de vínculo empregatício da sociedade empresária transportadora com transportador autônomo de cargas, descumpriu o decidido no julgamento da ADC 48.

Fixou-se, assim, na decisão da Reclamatória Constitucional, que as relações envolvendo a contratação de motorista autônomo que cumpre os requisitos da Lei 11.442/2007 possuem natureza jurídica comercial, razão pela qual devem ser analisadas pela justiça comum.

Por força do que ficou decidido na Reclamação Constitucional nº 46.356, a decisão proferida nos autos da Ação Trabalhista nº 0021547-86.2017.5.04.0221 – que havia fixado a competência da Justiça do Trabalho para analisar vínculo de emprego de motorista autônomo que perfazia os requisitos da Lei 11.442/2007 – foi cassada.

Assim, como consequência do julgamento da Reclamação Trabalhista nº 46.356, tem-se que o motorista autônomo regido pela Lei 11.442/2007 que pretenda ver reconhecido vínculo empregatício com seus consequentes reflexos trabalhistas deve acionar a Justiça Comum – estadual – sendo competência do juízo cível analisar a possível ausentes os requisitos da Lei 11.442/2007 e presentes os requisitos do artigo 2º e 3º da CLT.

Portanto, parte-se do pressuposto de que a relação entre empresa e motorista autônomo que cumpre os requisitos definidos na 11.442/2007 não é uma relação típica de emprego, mas sim uma relação civil.

Cumpre registrar que as decisões proferidas em reclamação constitucional não possuem efeito vinculante nem eficácia erga omnes, o que significa dizer que a decisão do STF, tanto em sua parte dispositiva, quanto no que se refere aos seus fundamentos e motivos determinantes, não se estende de forma automática a todos.

Contudo, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade gozam de eficácia erga omnes e efeito vinculante. No caso em análise, a decisão proferida pelo STF na Reclamação Constitucional nº 46.356 reconheceu a competência da Justiça Comum para julgar vínculo de motorista autônomo que cumpre os requisitos da Lei 11.442/2007, por considerar que a decisão de piso havia contrariado o julgamento da ADC 48/DF.

Portanto, constata-se que o julgamento da ADC 48/DF, ao reconhecer a constitucionalidade da Lei 11.442/2007 e a relação de natureza comercial entre o motorista autônomo (que preenche os requisitos da referida lei) e a empresa contratante, acaba por conduzir ao reconhecimento da competência da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho, para a análise de casos em que se discute o vínculo de motorista autônomo contratado nos moldes da Lei 11.442/07.

Por esta razão, o entendimento firmado na Reclamação Constitucional nº 46.356 – no sentido de que cabe à Justiça Comum a análise do vínculo de emprego do motorista autônomo que cumpre os requisitos da Lei 11.442/2007 – deve ser adotado em situações semelhantes, sob pena de desrespeitar a autoridade de decisão do STF.

 

Gabriela Pelles Schneider

Advogada. Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FDV.