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02/09/2021

Riscos trabalhistas da dispensa de empregados acometidos por doenças estigmatizantes ou que causam preconceito

1. Introdução

A legislação trabalhista prevê algumas situações que restringem, em alguma medida, a liberdade que o empregador tem de, por sua iniciativa, rescindir o contrato de seus empregados. Importantes restrições ao poder do empregador de encerrar o contrato de trabalho de seus empregados estão relacionadas ao estado de saúde do trabalhador. Com o objetivo de sanar algumas dúvidas e demonstrar os riscos que envolvem a dispensa sem justa causa de um empregado acometido por certas doenças, importante abordar a situação da dispensa no caso de empregado que possui (i) doença que causa estigma ou preconceito, (ii) doença que não possui relação com o trabalho e não é incapacitante e (iii) doenças que possuem relação com o trabalho.

As situações serão tratadas, ao longo das próximas semanas, em textos que serão aqui divulgados. Para iniciar, trataremos da previsão legal que impede qualquer dispensa por motivo discriminatório e a interpretação que o Judiciário tem feito a respeito de rescisões de contrato de empregados acometidos por doenças que causem estigma ou preconceito.

O pano de fundo desta discussão é a Lei 9.029/1995, que proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para acesso à relação de trabalho ou de sua manutenção.

 

2. Doenças que causam estigma/preconceito – Súmula 443, TST

Em 2012, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) editou a Súmula 443, dispondo que: “Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”.

Toda situação de empregado acometido por doença que cause estigma ou preconceito necessariamente esbarrará nesta súmula, em relação à qual é preciso destacar alguns pontos, quais sejam: (i) a presunção relativa da discriminação da despedida; (ii) a razão de ser da norma.

2.1 Da presunção relativa da discriminação da despedida em caso de empregado com doença estigmatizante

Com a edição da Súmula 443 do TST, introduziu-se a presunção relativa da discriminação da despedida, com a inversão do ônus da prova em desfavor ao Empregador.

Isso significa que, diante da dispensa de um funcionário acometido por uma doença estigmatizante, cabe ao empregador provar, de maneira robusta, que dispensou o reclamante, portador de doença grave, por motivo plausível, razoável e socialmente justificável, de modo a afastar o caráter discriminatório da rescisão contratual. Isso, no entanto, não significa que o empregado só possa ser dispensado por justa causa.

A questão que se põe, então, é a seguinte: nos casos em que o empregador exerce o seu direito de dispensar sem justa causa, como ele comprovará que o estado de saúde do empregado não foi o fator determinante para a rescisão?

Sobre este assunto, é possível encontrar, entre os julgados do TST, situações em que o próprio Tribunal afastou a aplicação da Súmula 443. Vejamos algumas destas situações para entender o que motivou a não aplicação da súmula:

2.1.1 Do julgamento do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 0002225-36.2014.5.02.0029

O caso trata da situação de uma empregada acometida por melanoma (câncer de pele) que foi dispensada pela empresa empregadora sem justa causa. Em sua reclamação trabalhista, a reclamante consignou que a dispensa foi discriminatória em decorrência da doença que lhe acometia.

Contudo, o seu pedido de reconhecimento de dispensa discriminatória foi indeferido, tendo o juízo de origem (de primeiro grau) concluído que não houve discriminação e arbitrariedade na dispensa da autora, porque, além de não ter sido comprovada a gravidade da patologia, inexistia prova inequívoca do conhecimento da doença pela reclamada.

Em sede de julgamento de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista, o TST consignou que

A presunção de ilegalidade do ato de dispensa do empregado portador de doença grave, ressoante na jurisprudência trabalhista, não pode ser de modo algum absoluta, sob risco de se criar uma nova espécie de estabilidade empregatícia totalmente desvinculada do caráter discriminatório que se quer reprimir.

Assim, nota-se que, no caso, a aplicação da Súmula foi afastada por duas razões: (i) porque não ficou comprovada a gravidade da doença; (ii) porque não ficou comprovado que a empresa empregadora sabia que o empregado estava doente.

2.1.2 Do julgamento do Recurso de revista nº 0113900-71.2011.5.17.0132

Outra situação em que o TST afastou a aplicação da Súmula 433 do TST ocorreu no julgamento do Recurso de Revista nº 0113900-71.2011.5.17.0132, em que o reclamante pretendeu o recebimento de indenização por danos materiais e morais em razão da sua dispensa.

No caso, a controvérsia girava em torno de se a empregadora conhecia ou não o estado de saúde do funcionário (soropositivo) no momento da demissão. A esse respeito, o reclamante sustentou que a empresa saberia da doença porque os exames demissionais indicaram alterações das taxas sanguíneas e, ainda assim, a empresa o demitiu. A reclamada, por sua vez, afirmou que não conhecia o quadro clínico do empregado e sustentou que não seria possível detectar a doença por exames médicos de rotina.

O juízo de origem, da 2ª Vara do Trabalho de Cachoeiro de Itapemirim, julgou improcedente o pedido, considerando que não houve queixa do reclamante nos exames médicos demissionais e que ele só procurou atendimento médico 07 (sete) dias depois da dispensa, após realizar o teste de HIV. De acordo com a sentença, não havia prova da ciência do empregador sobre a doença, de forma que a discriminação não poderia ser presumida.

Contudo, a sentença foi reformada pelo Tribunal Regional do Trabalho do Espírito Santo, que entendeu que a dispensa foi injusta e inválida. Consignou-se no acórdão que a confirmação da infecção por HIV não impede a dispensa do trabalhador nem garante estabilidade, mas obsta a dispensa sem motivação, cujo ônus compete ao empregador.

O TRT-17 aplicou a Súmula 443 do TST e reformou a sentença, condenando a empresa ao pagamento de indenização a título de danos materiais, equivalente a 12 (doze) meses de remuneração, e de danos morais no valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais).

Contudo, ao examinar o Recurso de Revista da empresa, o TST observou que mesmo disciplinada expressamente a questão na Súmula 443, no caso, nem o próprio empregado sabia que tinha o vírus HIV no momento da demissão. O Tribunal Superior considerou a data da dispensa e o dia da busca por atendimento médico para concluir que a empresa, ao dispensá-lo, não tinha conhecimento da sua condição de saúde.

O ministro relator entendeu que, embora o exame demissional confirmasse baixa de leucócitos, este fator não seria suficiente para, isoladamente, informar a empregadora de que o seu empregado seria portador do vírus HIV. Nestes termos, por unanimidade, a Turma deu provimento ao recurso de revista da empresa e restabeleceu a sentença.

2.2 A razão de ser da Súmula e as doenças por ela abrangidas

A Súmula 443 do TST tem como razão de ser a proteção constitucional à dignidade humana e a vedação a práticas discriminatórias nas relações de trabalho.

A grande questão é que a súmula utilizou um termo muito abrangente, ao se referir a “doença grave que suscite estigma ou preconceito”, cuja interpretação não é taxativa, ficando a cargo do julgador a interpretação do caso para verificar se a doença analisada na hipótese pode ser enquadrada desta forma.

Já foram consideradas “doença grave que suscite estigma ou preconceito”, AIDS, hanseníase, neoplasia maligna/câncer, esclerose múltipla e lúpus.

Por outro lado, não havendo uma definição objetiva do que vem a ser “doença grave que suscite estigma ou preconceito”, alguns julgados já afastaram a condenação em casos de doenças cardíacas, câncer ou diabetes, por entender que elas não suscitavam estigma ou preconceito, em virtude da impossibilidade de contágio e inexistência de sintomas visíveis.

Um exemplo é o julgamento do Recurso de Revista nº 0001379-81.2016.5.21.0041. No caso, o TST consignou que da Súmula 443 do TST extrai-se que não é apenas o fato de o trabalhador possuir doença grave que atrai a presunção acerca do viés discriminatório de sua dispensa. Assentou-se que o quadro clínico, além de grave, deve suscitar preconceito ou estigma nas demais pessoas, de modo a se presumir a discriminação em razão do próprio senso comum.

No caso analisado, a reclamante possuía diabetes. O TST entendeu que embora grave, não é possível dizer que a diabetes, por si só, é uma doença que provoque estigma ou preconceito no seio social, sobretudo porque não é contagiosa e não gera necessariamente sinais externos nos seus portadores.

Assim, como se verificou de todos os casos mencionados, relacionados ao desligamento de empregado acometido por doença que causa estigma ou preconceito, alguns fatores são muito importantes para determinar se a dispensa foi ou não discriminatória. São eles:

i. Conhecimento prévio da empresa sobre a situação de saúde do empregado;

ii. Gravidade da doença;

iii. Possibilidade de a doença gerar estigma ou preconceito.

2.3 Depressão e outras doenças psicológicas são consideradas estigmatizantes?

Outra situação que pode causar dúvidas gira em torno das doenças psicológicas. Nesse caso, haveria aplicação da Súmula 443 do TST?

O próprio TST já analisou situação semelhante tratando de depressão. No caso, o reclamante narrou que ficou afastado por três meses pelo INSS em razão de depressão e, assim que retornou, teve de assinar a sua rescisão. Alegou que a dispensa foi, dessa forma, discriminatória.

O TRT da 2ª Região (São Paulo), ao analisar o caso, considerou que o quadro depressivo do empregado não gera estigma ou preconceito, como ocorre com o vírus HIV. No caso específico havia também uma particularidade que foi registrada pelo TRT-2: em 2014, a empresa havia passado por uma redução no quadro de pessoal, em razão de crise econômica, fato que restou devidamente comprovado pelo depoimento das testemunhas.

No TST, o entendimento fixado pelo TRT-2 foi mantido, decidindo o colegiado que não se aplica a Súmula 443 ao caso por não se tratar de doença estigmatizante ou que gere preconceito, como ocorre com a AIDS.

Nesse caso, o TST não considerou a depressão como uma doença estigmatizante, o que levou à inaplicabilidade da Súmula. Contudo, nada impede que em um caso específico, restando evidente a conduta discriminatória no ato da dispensa, haja o reconhecimento da aplicação.

 

3. Medidas para afastar a presunção de dispensa discriminatória

Considerando, então, a situação em que a empresa tenha ciência de que o empregado é portador de doença que causa estigma o preconceito, que medidas a empresa poderia adotar para rescindir o contrato do trabalhador?

Como se disse inicialmente, nesse caso, a liberdade do empregador de sem qualquer justificativa, rescindir o contrato de trabalho é restringida. Para, então, reduzir significativamente os riscos trabalhistas da dispensa de um colaborador que possua alguma doença que possa ser considerada estigmatizante, o empregador pode se cercar das seguintes cautelas:

i. Demonstrar objetivamente que o empregado não está com desempenho compatível com o que dele se espera;

ii. Reunir eventuais medidas disciplinares aplicadas contra o empregado;

iii. Indicar eventual redução no quadro de empregados ou alguma reorganização de setor que tenha resultado em rescisões de contrato.

iv. Demonstrar que a empresa, há muito tempo, já tinha ciência da doença e que nada mudou na relação contratual.

As medidas acima, entre tantas outras, poderiam comprovar que o desligamento do colaborador estaria associado à performance, ao comportamento, à produtividade ou à reorganização da empresa, como um todo. O objetivo disso, então, seria afastar a presunção de que a dispensa se deu por ato discriminatório.

 

4. Conclusão

Como se verifica, a situação da demissão de empregado acometido por doença que causa estigma ou preconceito necessariamente esbarrará na Súmula 443 do TST, seja pela sua aplicação ou pelo seu afastamento.

Diante da análise dos julgados dos TRTs e também do TST, os fatores que definem a aplicação ou não da súmula e, por consequência, conduzem à conclusão pela discricionariedade ou legalidade da dispensa são os seguintes: 1) se a doença é grave; 2) se o empregador conhecia a situação de enfermidade do empregado; 3) se a doença grave que acomete o empregado, conhecida pelo empregador, causa estigma ou preconceito; 4) se a dispensa pelo empregador ocorreu em virtude da doença grave e estigmatizante.

 

Gabriela Pelles Schneider
Advogada. Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FDV.

Gabriel Gomes Pimentel
Advogado. Especialista em direito empresarial pela FGV.