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13/05/2020

O ônus da prova nas discussões quanto às horas extras do empregado não sujeito a controle de jornada

Dever de produzir prova quanto à jornada e ônus processuais. Trabalhador externo, gerente, empregados em teletrabalho): mitigação dos efeitos da Súmula 338 do TST na hipótese de indicação de jornada inverossímil.

O art. 62 da CLT aborda três grupos de empregados que são excetuados do regime de controle de jornada. São eles: (i) trabalhador que exerce atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho; (ii) gerentes que exercem cargos de gestão; (iii) empregados em regime de teletrabalho.

A rigor, os trabalhadores que se enquadrem nas hipóteses previstas no art. 62 da CLT não têm jornada controlada e, por isso, não são abrangidos pelo regime previsto no Capítulo II da CLT, que trata exatamente da Duração do Trabalho. Isto significa que as regras relativas à jornada (horas extras, intervalo intrajornada, compensação de jornada, banco de horas) não se aplicam a tais empregados.

Atualmente, outra relevante discussão vem sendo feita, no sentido de ser possível ou não estabelecer redução de jornada e salário, com base na Medida Provisória 936/2020, para tais empregados. O ponto de controvérsia é exatamente a dificuldade de se admitir que haja redução, se não há qualquer modalidade de controle. Mas este não é o objetivo deste texto.

O ponto central deste texto é abordar situações comumente discutidas em reclamações trabalhistas em que os trabalhadores pretendem, a despeito do que prevê o art. 62 da CLT, exigir pagamento de horas extras, sob alguns argumentos que serão destacados adiante.

 

Ônus da prova em relação ao enquadramento do empregado na situação de exceção ao regime do capítulo da CLT relativo à jornada de trabalho

Inicialmente, vale esclarecer que, por se tratar de fato impeditivo ao direito do reclamante, incumbe, como regra, ao empregador o ônus de comprovar que o trabalhador se enquadra em uma das hipóteses listadas no art. 62 da CLT.

Esse ônus do empregador restou mitigado em relação ao gerente geral de agência bancária, em razão de entendimento sumulado do TST (enunciado nº 287). Todavia, a rigor, cabe ao empregador demonstrar o fato impeditivo alegado. A isso se soma o fato de que, por se tratar de medida excepcional, incumbe ao empregador demonstrar o enquadramento do empregado nessa situação.

Nos processos trabalhistas em que há discussão a respeito do direito de algum empregado a horas extras, o empregador que alega que o trabalhador se enquadra em uma das exceções do art. 62 da CLT tem o encargo de comprovar suas alegações.

O empregado, por sua vez, tem interesse jurídico de demonstrar – como contraprova, a se considerar o ônus do reclamado – algumas situações que poderiam, em tese, afastar o enquadramento em uma das hipóteses do art. 62 da CLT, conforme exemplos de abordagens comuns nesses tipos de ação judicial:

i) trabalhador externo: i.1) o trabalho é compatível com a fixação de jornada; i.2) a empresa mantém algum controle, por meio de sistemas informatizados ou eletrônicos; i.3) a empresa poderia, ainda que disto não faça uso, utilizar meios para controlar a jornada etc.;

ii) empregado de confiança: ii.1) a empresa efetivamente controla sua jornada; ii.2) não há preenchimento de cargo de confiança; ii.3) seus poderes são bastante limitados etc.;

iii) Empregado em teletrabalho: a empresa possui meios efetivos de controle de jornada e os utiliza;

Caso o Juiz entenda que, de fato, o empregado se enquadra em uma das hipóteses do art. 62 da CLT, não haverá direito ao pagamento de horas extras. Por outro lado, se esse não for o entendimento do Julgador, o ponto seguinte do julgamento será analisar a efetiva jornada de trabalho para concluir se há direito ao pagamento de horas extras.

 

Ônus da prova da efetiva jornada de trabalho. Súmula 338 do TRT. Presunção de veracidade da jornada de trabalho indicada na inicial.

Se o Juiz entende que o empregado não se enquadra na exceção prevista no art. 62 da CLT, há necessidade de se analisar qual efetivamente foi a jornada de trabalho do reclamante.

Nesse ponto, atualmente, o empregador que conta com mais de 20 (vinte) empregados[1] tem o ônus de controlar a jornada de seus empregados. Ocorre que, nesse tipo de discussão, normalmente o empregador se limita a demonstrar documentalmente que não havia controle, ou seja, não há, como regra, exibição de controles de frequência juntamente com a defesa, até mesmo porque isto seria incompatível com a linha defensiva.

Ocorre que, afastado o enquadramento no regime excepcional, incumbirá ao empregador o ônus de efetivamente demonstrar a jornada de trabalho de seu empregado, o que, na prática, se revela muitas vezes difícil.

Há, então, três situações que são relativamente comuns nesse tipo de ação:

i) O empregador produz prova suficientemente clara de que o trabalhador não excedia a jornada autorizada em lei;

ii) O empregador produz prova, mas o trabalhador também produz prova em sentido contrário, configurando-se hipótese de “prova dividida”;

iii) O empregador nada prova em relação à efetiva jornada de trabalho.

Na primeira situação acima, a solução é muito simples: se há prova robusta no sentido de não haver trabalho além do limite legal, mesmo que o juiz afaste o enquadramento do empregado em uma das hipóteses do art. 62 da CLT, os pedidos relacionados à jornada serão rejeitados.

Nas demais situações, a solução é mais complexa, como se passa a demonstrar.

Na situação descrita no item “ii” – ou seja, em que há “prova dividida”-, há julgados em que (ii.1) o juiz estabelece uma média entre as jornadas indicadas pelas testemunhas de cada partes, (ii.2) outros em que o juiz demonstra, a partir de alguns elementos dos autos, por que motivos pode desprezar alguma das versões diferentes a respeito do mesmo ponto controvertido; ou (ii.3) o juiz decide em desfavor de quem detinha o ônus da prova (empresa) e admite como verdadeira a jornada indicada na petição inicial, com base na Súmula 338 do TST.

Na última situação descrita, em que o empregador nada prova (item “iii”), a solução mais comum também é presumir verdadeira a jornada de trabalho indicada na petição inicial, também com fundamento na Súmula 338 do TST, que assim dispõe:

Súmula nº 338 do TST

JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 234 e 306 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)

III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003)

Os itens I e II da Súmula acima estabelecem, em resumo, que o ônus da prova da jornada é do empregador que contar com mais de 10 (dez) empregados (esse limite foi recentemente alterado para 20 (vinte) empregados); quando os controles não são apresentados, presume-se verdadeira a jornada indicada na petição inicial; e, finalmente, essa presunção pode ser elidida por prova em sentido contrário.

É possível, então, que se proceda ao julgamento por presunção em processos em que o empregador que não apresenta controles de frequência (por sustentar uma das hipóteses do art. 62 da CLT) e não consegue afastar a presunção de veracidade da jornada indicada na petição inicial.

Ocorre, todavia, que é muito comum que a jornada indicada na petição inicial não seja verossímil. Ainda assim, não raras vezes as empresas são condenadas a pagar horas extras, a partir de um juízo de presunção, com base em jornadas de 16h a 18h diárias.

Esse texto, então, é uma crítica à utilização quase irrestrita da Súmula 338 do TST como técnica de julgamento por presunção, especialmente quando se estiver diante de jornadas de trabalho inverossímeis.

O art. 844 da CLT, com a redação dada pela Lei 13.467/2017, passou a conter o §4º, que trata dos efeitos da revelia. O referido artigo reproduz quase a literalidade do art. 345 do CPC. Ambas as disposições estabelecem que a revelia não produz efeitos quando os fatos alegados forem inverossímeis. Ou seja, mesmo que sequer houvesse contestação, a presunção de veracidade quanto às questões de fato não atingiria alegações que não fossem verossímeis.

É claro que, para avaliar a existência, ou não, da verossimilhança das alegações do reclamante, o juiz precisará se valer da observação do que ordinariamente ocorre nas relações de trabalho, fazendo uso das chamadas “máximas de experiência”, de que fala o art. 375 do CPC. Para isso, então, terá grande valor a experiência adquirida pelo magistrado no exercício de sua atividade. De todo modo, esta é uma fonte de convicção que não pode ser desprezada.

O Tribunal Superior do Trabalho entendeu recentemente não ser possível aplicar a presunção de veracidade da jornada indicada na petição inicial, quando se estiver diante de uma jornada inverossímil. Com isso, deu provimento ao recurso de revista da empresa, que suscitava a equivocada aplicação da Súmula 338 do TST. Vale transcrever trecho da ementa do julgado:

RECURSO DE REVISTA DA JBS. ANTERIOR À LEI N° 13.467/2017. JORNADA DE TRABALHO INVEROSSÍMIL. SÚMULA N° 338/TST. Nos termos do item I da Súmula 338 do TST “é ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário”. Assim, a ausência de controles de ponto gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, que pode ser elidida por prova em contrário, dentre as quais constam a razoabilidade e a experiência do magistrado (art. 375 do CPC), de modo que não se impõe a adoção pelo julgador de toda e qualquer jornada de trabalho informada pelo reclamante, sobretudo quando esta se mostrar inverossímil, como ocorre no presente caso. Não há como reconhecer, por presunção, a veracidade da jornada declinada na inicial, de 18 horas diárias, cumprida todos os dias, com apenas duas folgas por mês e durante um ano (duração do contrato). Recurso de revista conhecido por má aplicação da Súmula n° 338/TST e provido.

(RR-975-43.2014.5.23.0106, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 21/02/2020)

Após a Lei 12.619/2012, o motorista não se enquadra mais como trabalhador externo com jornada não suscetível a controle; obrigatoriamente, passou a ser imposto às empresas que controlassem a jornada de seus motoristas. A Lei 13.103/2015 alterou uma série de dispositivos da Lei 12.619/2012, mas manteve a necessidade de controle de frequência. Portanto, desde 2012, essa discussão é menos relevante em relação ao motorista carreteiro. Mas, antes disso, período abrangido pelo processo acima, era muito comum às transportadoras alegar que seus empregados se enquadravam na hipótese do art. 62, I, da CLT (trabalhador externo).

No caso julgado pelo TST, um motorista carreteiro da empresa JBS alegou que trabalhava 18h por dia, com apenas duas folgas por mês. Infelizmente, antes da reforma trabalhista, esse tipo de alegação era bastante comum em processos de motoristas carreteiros e, por vezes, o Judiciário condenava as empresas ao pagamento de horas extras por presunção de veracidade da jornada indicada.

Ocorre que, como se disse acima, mesmo na hipótese de revelia, não há que se admitir como verdadeira jornada indicada na petição inicial que não seja verossímil. A decisão do TST, portanto, representa um importante paradigma de relativização da aplicação da Súmula 338 do TST.

  

Conclusão

Pelos argumentos acima, pensamos que a presunção de veracidade da jornada indicada pelo reclamante na petição inicial, seja na hipótese de revelia, seja quando ocorrer confissão ficta pela ausência da empresa a alguma audiência, seja quando não houver prova produzida pelo empregador, deve ser aplicada com ressalvas.

Quando se estiver diante de fatos inverossímeis, ainda que o empregador não se desvencilhe a contento de seu encargo probatório, o Juiz não poderia reputar verdadeira a jornada indicada na petição inicial.

Considerando especialmente que os poderes instrutórios do juiz são ampliados no processo do Trabalho, recomenda-se que sejam analisados os demais elementos dos autos e, sempre que possível, mesmo na hipótese de revelia, seja produzida prova, com vistas a obter condições de proferir um julgamento compatível com a situação fática havida durante o contrato de trabalho.

 

Gabriel Gomes Pimentel

Advogado. Especialista em direito empresarial pela FGV.