Publicações

11/05/2020

Resolução nº 4.801/2020: oportunidade para os produtores rurais em meio à crise do novo coronavírus

Em 9 de abril, o Banco Central do Brasil publicou a Resolução nº 4.801/2020, que determina uma série de desembaraços para os produtores e as cooperativas rurais no tocante ao modo e ao prazo de quitação de operações de crédito rural de custeio e de investimento; bem como ao financiamento e à contratação de linhas de crédito específicos de programas governamentais voltados ao setor primário.

Uma vez mais, o Bacen, autarquia vinculada ao Ministério da Economia, atuou do ponto de vista normativo para viabilizar, junto às instituições financeiras, a solvência e a liquidez de micro, pequenos e médios produtores rurais diante de cenários disruptivos, tal como a atual pandemia do novo coronavírus. Vale rememorar outras situações que demandaram essa intervenção, como a seca de 2016 a 2018 na região norte do estado, a qual, por estar incluída na macrorregião da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), sofreu incidência da Resolução nº 4.660/2018, igualmente responsável por “permitir” – leia-se “determinar”, como será mais à frente explicado – a renegociação das dívidas de operações de crédito rural de custeio e de investimento contratadas até 31 de dezembro de 2016.

 

1 – Poder normativo

Antes de passarmos aos detalhes da Resolução nº 4.801/2020, é oportuno entendermos o seu poder normativo. As resoluções são atos que veiculam normas para a explicitação das leis, caracterizando-se como formalização do poder regulamentar de que é dotado o Executivo. Mostra-se legítima a atuação normativa do ente ou do órgão vinculado ao Executivo sempre que capaz de ser justificada como a integração de uma escolha legislativa.

No caso da resolução em comento, o Banco Central, enquanto autarquia vinculada – mas não subordinada – ao Ministério da Economia, goza do permissivo do art. 84, IV, da Constituição, que acaba por autorizar a recepção e a vigência da Lei nº 4.595/1964, que assim dispõe em seu art. 9º: “compete ao Banco Central da República do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional”.

Então, a Resolução nº 4.801/2020, assim como as demais publicadas pelo Banco Central após deliberação do Conselho Monetário Nacional, é um ato normativo que cria direitos para determinados produtores rurais, direitos estes que, uma vez constituídos mediante manifestação de vontade, são oponíveis a todas as instituições financeiras do território nacional.

Portanto, não se trata de mera “permissão” ou faculdade para a renegociação de dívidas, como enunciava o introito da Resolução nº 4.660/2018; e, sim, de uma autorização – conforme enuncia a Resolução nº 4.801/2020 – para que tais renegociações sejam empreendidas em caráter obrigatório sobre as instituições financeiras, já que independem de sua concordância.

 

2 – Produtores contemplados e condições de pagamento e de financiamento

A Resolução, em seu art. 1º, determina que, com o requerimento do produtor rural, as instituições financeiras prorroguem para até 15 de agosto de 2020 o vencimento das parcelas vencidas ou vincendas, no período de 1º de janeiro de 2020 a 14 de agosto de 2020, das operações de crédito rural de custeio e investimento contratadas.

A regra beneficia agricultores familiares e suas cooperativas de produção agropecuária, cuja comercialização da produção tenha sido prejudicada em decorrência das medidas de distanciamento social adotadas para mitigar os impactos da pandemia do novo coronavírus, mantidas as demais condições pactuadas. Percebe-se que, embora o governo federal tenha expedido o decreto de calamidade pública em 20 de março de 2020, o marco temporal inicial da pandemia para os fins da Resolução antecede tal data, abrangendo toda a primeira metade do ano de 2020. Isso evitará, em eventuais processos judiciais, discussões com vista a definir quando a produção, a comercialização e o cumprimento das obrigações realmente foram afetados por eventos relacionados à pandemia.

Ademais, o art. 2º altera algumas disposições do Manual de Crédito Rural (MCR) e garante fonte de recursos aos bancos a fim de potencializar os financiamentos, proporcionando capital de giro para o setor rural. Com isso, permite, até 30 de junho de 2020, a contratação de Financiamento para Garantia de Preços ao Produtor (FGPP) com verba do MCR 6-2, ampliando os recursos para comercialização da produção e garantindo que o produtor rural receberá, pelo seu produto, valor não inferior ao preço mínimo, conforme nota emitida pelo Ministério da Economia.

O limite de crédito por beneficiário será de R$ 65 milhões, com juros de até 6% ao ano para as agroindústrias familiares e para as cooperativas constituídas por beneficiários do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), desde que possuam Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) ativa; e de até 8% ao ano para os demais beneficiários. Isso é um exemplo do amplo impacto da Resolução, considerando que, no Brasil, segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, 84,4% dos mais 5,2 milhões de estabelecimentos rurais do país pertencem a micro, pequenos e médios produtores, isto é: a produtores com receita bruta anual de R$ 60 mil[1] a R$ 90 milhões, conforme normas publicadas anualmente pelos administradores dos Fundos Constitucionais.

Por fim, autorizou-se, nos arts. 2º e 3º, a concessão de crédito especial de custeio aos agricultores familiares do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e aos produtores rurais do Pronamp (Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural), cuja venda da produção tenha sido prejudicada pela redução da demanda. O volume de recursos por produtor será de até R$ 20 mil no caso do Pronaf, com taxa de juros de 4,6% ao ano; e, no caso do Pronamp, será de R$ 40 mil, com taxa de juros de 6% ao ano. O prazo de reembolso será de até 36 meses, incluídos até 12 meses de carência, e o termo final de contratação do financiamento será igualmente o dia 30 de junho de 2020.

 

3 – Efeitos jurídicos sobre os produtores rurais e as instituições financeiras

Consoante o exposto no tópico 1, a Resolução nº 4.801/2020 é um ato normativo que cria direitos potestativos para determinados produtores rurais, direitos estes que, uma vez constituídos mediante manifestação de vontade, são oponíveis a todas as instituições financeiras do território nacional.

No que toca à prorrogação do vencimento das parcelas vencidas ou vincendas das operações de crédito rural de custeio e investimento contratadas, o Superior Tribunal de Justiça definiu que “o alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei” (Súmula nº 298). Logo, basta que o produtor rural requeira a prorrogação em prazo hábil, determinado no ato normativo, para que seja garantido seu direito à prorrogação, independentemente da concordância por parte da instituição financeira, outro polo da relação jurídica.

Em suma, trata-se de um direito do produtor rural frente aos bancos junto aos quais contraiu financiamento, desde que preencha os requisitos previstos na Resolução e faça o requerimento em tempo hábil.

Então, caso o produtor rural tenha seu direito à prorrogação negado após requerimento na instituição financeira, é cabível o ajuizamento de ação a fim de confirmar judicialmente que tal prorrogação operou de pleno direito e que, portanto, já deve produzir os seus efeitos. Saliente-se que deve ser uma ação declaratória, e não constitutiva; o exercício do direito potestativo ocorre no momento mesmo do requerimento junto à instituição financeira. Caso contrário, poderia haver dúvidas quanto ao cumprimento do prazo estabelecido para requerimento da prorrogação.

Quanto às alterações no Manual de Crédito Rural (MCR), que desentravam recursos a fim de incentivar os financiamentos rurais oferecidos pelos bancos, não nos parece que o cenário seja o mesmo. A realização, ou não, da operação de crédito rural – ou seja, a celebração do contrato – nos termos previstos no ato normativo remanesce dentro da margem de discricionariedade da instituição financeira. Não é porque o banco goza de mais mecanismos financeiros e de vantagens fiscais para proceder ao financiamento que, de fato, irá fazê-lo. Portanto, reafirmamos que a intenção é garantir fonte de recursos aos bancos a fim de potencializar os financiamentos, proporcionando capital de giro para o setor rural.

Finalmente, é importante ressaltar que em hipótese alguma a modificação do prazo de vencimento das obrigações contraídas, nos termos da Resolução, caracteriza novação objetiva do contrato originalmente celebrado. A novação perpassa a substituição de uma obrigação por outra, pela intenção das partes de novar, manifestada mediante acordo, cessando o vínculo anterior com a aquisição de novo direito de crédito. A nova obrigação, caso consista, por exemplo, no pagamento de uma dívida contraída, sujeita-se a prazos e formalismos próprios, inclusive com relação à data de aperfeiçoamento dessa obrigação.

Evidentemente não é o caso, porquanto se trata de mera extensão do prazo de pagamento e, dessarte, de modificação de cláusula acessória. A alteração de prazos ou condições acessórias não importa novação, vez que, preservadas as características substanciais do contrato e ausente a intenção de novar, a segunda obrigação somente alcança a eficácia de confirmar a primeira.

 

Conclusão

O Espírito Santo é um dos líderes na produção agropecuária entre as unidades federativas, especialmente se considerada a produção pecuniária per capita. Iniciativas legislativas ou regulamentares que buscam auxiliar os produtores na quitação de suas obrigações, na perpetuidade da sua produção e na comercialização dos ativos são sempre bem-vindas. Nesse caso, ainda que o prazo limite para prorrogação (15 de agosto de 2020) seja curto ante os graves prejuízos à produção e à comercialização, tem-se uma vitória jurídica do setor agropecuário que deve ser zelada pelos tribunais, caso necessário.

 

Lorenzo Caser Mill

 

Thiago Ferreira Siqueira

Advogado. Pós-doutor em direito processual civil pela Ufes.

 

Referência

[1] Microempreendedores individuais, definidos pela Lei complementar nº 139/2011, como empresários individuais que tenham auferido receita bruta no ano anterior de até R$ 60.000,00.