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19/07/2020

Diálogo competitivo: esperança para o fortalecimento da relação entre poder público e startups

É sabido que a Administração Pública celebra diversos contratos com entes privados no decorrer da sua atuação, reunindo esforços de diferentes atores sociais para o adequado cumprimento de suas funções.

Tratando-se de avença contendo a Administração em um dos polos, necessariamente se está diante de um contrato administrativo ou de um contrato de direito privado da Administração. O primeiro visa à prestação de serviço público, não no sentido restrito de atividade exercida sob regime jurídico exorbitante – ou seja, regida por disposições que fogem ao direito privado –, mas em sentido lato, abrangendo toda atividade que o Estado assume perquirindo a realização de um interesse público. Englobam tais contratos, por exemplo, os serviços públicos comerciais e industriais do Estado que, embora exercidos, em geral, sob regime de direito privado, podem ter execução transferida ao particular por meio do contrato de concessão de serviço público, que é o contrato administrativo por excelência.

Em contrapartida, os sobreditos contratos de direito privado geralmente restringem seu objeto à facilitação ou à viabilização da prestação do serviço público, como a locação de um imóvel para nele instalar uma repartição pública, ou a contratação de empresa terceirizada para a limpeza de unidades de saúde. São eles apenas um meio para que se proceda à atividade de notório interesse público, razão pela qual a caracterização do contrato administrativo é a utilidade pública que resulta diretamente da avença.

Dito isso tudo, a verdade é que, para o tema deste trabalho, pouco importa a espécie contratual em que a avença se enquadra; estando envolvido dinheiro público, a regra é a realização de licitação prévia à contratação, dada a sua obrigatoriedade constitucional (art. 37, inciso XXI). Inclusive, para não deixar qualquer brecha, a atual Lei de Licitações considerou como “contrato” todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.

Por uma série de motivos que serão a seguir mais bem expostos, as contratações públicas não foram muito atrativas às startups até então. Porém, uma nova modalidade de licitação, prevista no texto do Projeto de Lei nº 1.292/95 – que, uma vez aprovado no legislativo federal, seria a “Nova Lei de Licitações” –, promete mudar essa cenário e potencializar a atuação desse modelo de negócio junto ao poder público: eis o diálogo competitivo.

 

Atuação das startups em contratos administrativos e o diálogo competitivo

Startup é uma empresa jovem com um modelo de negócios repetível e escalável, em um cenário de incertezas e soluções a serem desenvolvidas. Embora a incerteza condene grande parte das iniciativas a se tornarem rapidamente inviáveis, a escalabilidade permite grande crescimento de receita acompanhado de uma lenta evolução dos custos, tornando a margem de retorno cada vez maior e possibilitando pesados reinvestimentos no crescimento da empresa; e a repetibilidade proporciona a entrega do mesmo produto em escala potencialmente ilimitada, sem muitas customizações ou adaptações para cada cliente.

Traçadas essas características, não é difícil perceber o porquê da dificuldade das startups em contratar junto ao poder público. Dado o pouco tempo de atuação junto ao mercado e o reduzido capital social, as startups enfrentam empecilhos sobretudo na fase de habilitação licitatória: a necessidade de comprovação de liquidez e robustez financeira e de capacidade técnica (arts. 30 e 31, Lei nº 6.666/93) frequentemente impõe óbice intransponível para as fases seguintes (concorrenciais) do certame. Isso relegou muitas startups a atuarem somente em hipóteses de inexigibilidade de licitação, como quando há “contratação de serviços técnicos de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização”, ou em casos de dispensa de licitação, sobretudo quando o valor da contratação é baixo e varia entre R$ 8.000,00 e R$ 15.000,00, a depender do objeto do contrato.

Vale lembrar que a Medida Provisória nº 961/2020 modificou esse limite enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020: a contratação de obras e serviços de engenharia está dispensada de licitação em valores até R$ 100.000,00[1], enquanto a dispensa para outros serviços e compras ou alienações conta com teto de R$ 50.000,00.

De toda sorte, a contratação de empresas que, isoladamente, não atendem a determinados requisitos habilitatórios é viável quando o edital do certame permite a formação de consórcios, no intuito de que diferentes pessoas jurídicas se reúnam para prestar conjuntamente o serviço ou fornecer os produtos requisitados pela Administração. Enfim, apenas outro exemplo de que, embora possível, a participação de startups em licitações tende a enfrentar desafios.

Contudo, o Projeto de Lei n.º 1.292/95 inova e introduz uma alternativa: o diálogo competitivo surge como esperança para transpor as dificuldades enfrentadas pelo poder público na contratação de objetos complexos e inovadores, fortalecendo, simultaneamente, a competitividade das startups nos procedimentos licitatórios. Por meio dessa modalidade, a Administração define suas necessidades e os critérios de pré-seleção de licitantes; após, inicia diálogos com os licitantes selecionados, de modo a obter informações e alternativas de soluções para a fragilidade apresentada. Esse diálogo se estende até que seja prudentemente definida a solução mais adequada, permitindo, então, que todos aqueles licitantes selecionados apresentem suas propostas.

O diálogo competitivo abre legalmente as portas para que o mercado ofereça soluções alternativas às necessidades dos órgãos públicos. Com o seu ingresso no ordenamento jurídico, cria-se uma flexibilidade inexistente nas modalidades licitatórias atuais e autoriza-se a interação monitorada entre a Administração e os licitantes, com fins de desenvolvimento de produtos ou serviços sob medida. Por isso, o PL n.º 1.292/95 reserva o uso do diálogo competitivo apenas para objetos que envolvam inovação tecnológica e alta complexidade, nos quais a Administração requer inputs do mercado para identificar as soluções existentes e, então, definir as especificidades do que irá contratar.

As alíneas “b” e “c” do inciso I do art. 32, por sinal, são particularmente relevantes: definem como condições sine quae non – isto é, condições inafastáveis – para a licitação mediante diálogo competitivo a impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e a impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração. Ou seja, o serviço idealizado pela startup e buscado pelo poder público tem de ser único e dotado de tecnologia com adaptação pioneira na área, sem possibilidade de “readequação” de uma tecnologia já utilizada e posta em prática pela Administração relacionada a outro serviço.

Frise-se que as discussões posteriores à pré-seleção dos licitantes podem envolver não apenas a definição do objeto a ser contratado, mas também a estrutura e as condições contratuais, como prazos, fases de desenvolvimento, fornecimento do objeto e modo de remuneração do ente privado. Ainda que tudo pareça deveras “abstrato” para despertar o interesse das startups – imagine ter todo esse trabalho e não resultar em nada? –, a grande vantagem do diálogo competitivo é justamente ser uma modalidade de licitação: a troca e a interação entre Administração e iniciativa privada se vincula à concorrência pela contratação do serviço – ou seja, haverá contratação. Isso difere do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI), instituído pelo Decreto n.º 8.428/2015, em que não há garantia alguma de que a futura licitação será realizada e que, por conseguinte, os investimentos despendidos na realização dos estudos serão ressarcidos, o que o torna pouco atrativo a empresas inovadoras iniciantes e com pouco capital de giro.

 

Necessidades atuais que poderiam demandar a adoção do diálogo competitivo

 Apanhando todo o exposto, o diálogo competitivo aproveitaria a contratação de diversos serviços de viés tecnológico com soluções atrativas ao interesse público. A título de exemplo, citamos os seguintes:

  • Serviços de mobilidade urbana, como aplicativos voltados à contratação de bicicletas e patinetes ou à disponibilização de horários de modais de transporte público;
  • Serviços de análise comparativa de propostas de licitação, como um software que classifique o custo-benefício daquela proposta com base no preço e no desempenho médios do mercado;
  • Serviços de agendamento em órgãos públicos, como aplicativos relacionados a unidades de saúde e hospitais, e de intermediação facilitada no contato do cidadão com o poder público, tais como plataformas que permitem ao administrado informar sobre eventuais problemas de infraestrutura ou de segurança pública;
  • Serviços de análise de produtividade e desempenho de órgãos públicos.

Decerto, as hipóteses são incontáveis e crescerão sempre no compasso da evolução tecnológica.

 

Conclusão

Caso aprovado o PL n.º 1.292/95 – e há fortes indícios de vontade política nesse sentido –, o diálogo competitivo será a modalidade licitatória com o condão de potencializar e fomentar a interação entre startups e o poder público. Para que o procedimento se mostre exitoso, porém, é fundamental que a Administração se cerque de técnicos e negociadores experientes, o que requer a capacitação dos agentes públicos envolvidos neste procedimento ou, ainda, a contratação de consultores especializados – algo admitido pelo PL no art. 31, §1º, inciso XI –, ao menos até que a Administração desenvolva equipes capazes de conduzir sozinhas esse processo.

 

Lorenzo Caser Mill

Advogado

 

Renata Fávero Singui

Advogada. Mestranda em direito processual civil pela Ufes.