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02/11/2021

A publicação da Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência que considera discriminatória a exigência, pelo empregador, de certificado de vacinação do empregado

O Ministério do Trabalho e Previdência publicou, em 01 de novembro de 2021, a Portaria nº 620, que proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para acesso à relação de trabalho, incluindo entre as práticas discriminatórias a exigência, pelo empregador, de documentos discriminatórios, “especialmente comprovante de vacinação”.

O conteúdo da Portaria é no sentido oposto da orientação do Ministério Público do Trabalho (MPT), assim como das decisões que até então estavam sendo proferidas pela Justiça do Trabalho. Desse modo, em vez de gerar mais segurança, ao menos neste momento inicial, a Portaria acaba por ensejar uma série de questionamentos.

Antes, contudo, de pontuar as inseguranças geradas pela Portaria, importante entender o que ela determina.

 

1. Conteúdo da Portaria 620 do MTP

A Portaria possui apenas 5 artigos, de modo que seu conteúdo pode ser sintetizado da seguinte maneira:

i. A Portaria proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para acesso à relação de trabalho, proibindo ao empregador, na contratação e na manutenção do emprego, exigir documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente comprovante de vacinação, além de outros.

ii. A Portaria considera prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão.

iii. Considera prática discriminatória a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação.

iv. Dispõe que o empregador deve divulgar orientações com a indicação das medidas necessárias para prevenção, controle e mitigação de riscos de transmissão da Covid-19 no ambiente de trabalho, incluído o respeito à política nacional de vacinação, podendo estabelecer políticas de incentivo à vacinação dos trabalhadores.

v. Disciplina que o fim da relação de trabalho pela não apresentação, por exemplo, de certificado de vacinação, além do direito à reparação por dano moral, faculta ao empregado optar entre a reintegração ao trabalho com ressarcimento integral de todo o período afastado ou a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento.

Nos termos da Portaria, a única possibilidade de obrigatoriedade de apresentação do certificado de vacinação, é no caso de o empregador oferecer aos seus trabalhadores a testagem periódica que comprove a não contaminação pela Covid-19. Neste caso, os trabalhadores ficam obrigados à realização de testagem ou à apresentação de cartão de vacinação.

Assim, em síntese, a Portaria veda a dispensa por justa causa em virtude da não apresentação de certificado de vacinação, considerando tal ato como discriminatório, apto a ensejar a condenação ao pagamento de indenização por danos morais, a reintegração do trabalhador, ou o pagamento ao empregado, em dobro, da remuneração do período de afastamento.

Conforme já mencionado, porém, o conteúdo da Portaria é contrário àquilo que vinha sendo construído enquanto entendimento a partir das orientações do Ministério Público do Trabalho e de decisões da Justiça do Trabalho, o que leva a necessidade de explorar alguns pontos, fundamentais para entender como agir diante da publicação da Portaria nº 620. São eles:

– O conflito da Portaria com as decisões da Justiça do Trabalho e as orientações do MPT sobre o tema
– O “status normativo” da Portaria nº 620, isto é, se ela tem força de lei
– A possibilidade de “presunção” de ato discriminatório no caso de dispensa SEM justa causa de quem se recusa a vacinar-se
– O conflito entre a proibição de o empregador dispensar quem se recusa a se vacinar x risco de caracterização de doença ocupacional: o empregador tem seu poder diretivo limitado, mas sofre os ônus de eventual omissão?

Vamos explorar cada um desses pontos a seguir.

 

2. O conflito da Portaria com as decisões da Justiça do Trabalho e as orientações do MPT sobre o tema

Em nosso site, já havíamos analisado a possibilidade de dispensa por justa causa do empregado que se recusasse a vacinar-se.

Naquela oportunidade, informamos que havia decisões judiciais no sentido de ser possível a aplicação da medida disciplinar mais gravosa, ocasião em que explicamos o caso da 2ª Vara do Trabalho de São Caetano do Sul (SP) que validou a dispensa por justa causa de uma auxiliar de limpeza de hospital que se negou a tomar a vacina contra a Covid-19, tendo o TRT-2 mantido a decisão.

Explicamos também, na ocasião, que quando as vacinas começaram a ser aplicadas no país, o Ministério Público do Trabalho se posicionou de forma favorável à demissão por justa causa de trabalhadores que se recusassem a tomar vacina sem apresentar razões médicas documentadas. Segundo o MPT, as empresas devem buscar conscientizar e negociar com seus funcionários, mas a mera recusa individual e injustificada não poderia colocar em risco a saúde dos demais empregados.

Com isso, é possível verificar que a forma como vinha decidindo o Judiciário e orientando o MPT é diversa da que estabeleceu o Ministério do Trabalho e Previdência através da publicação da Portaria nº 620.

Esse conflito faz gerar a seguinte dúvida: o que o empregador deve seguir para fundamentar sua decisão? O entendimento do Judiciário, as orientações do Ministério Público do Trabalho ou a Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência?

Para definir a postura a ser adotada, importante entender o “status normativo” de uma portaria, isto é, se ela possui força de lei.

 

2. A Portaria nº 620 tem força de lei?

As portarias se caracterizam como ato administrativo ordinário, o que significa que possuem como finalidade disciplinar o funcionamento da Administração Pública ou a conduta de seus agentes.

Elas são criadas para regulamentar a prática de uma lei, da Constituição Federal, de decreto, regulamento ou outros atos normativos superiores.

Ocorre que uma portaria não possui força de lei, não podendo criar direitos ou obrigações novas, não estabelecidos no texto básico. Igualmente, não pode ordenar ou proibir o que o texto fundamental ordena, ou não proíbe. Ainda, não pode facultar ou proibir diversamente do que o texto básico estabelece.

Contudo, a leitura da Portaria nº 620 nos permite concluir que ela cria proibições não previstas em lei, ao estabelecer como discriminatória a exigência de apresentação de certificado de vacinação e, por consequência, proibir a dispensa por justa causa de trabalhador que se recusar a vacinar-se.

3. No caso de dispensa SEM justa causa de quem se recusa a vacinar, haverá “presunção” de ato discriminatório?

Outra dúvida que surge é sobre a dispensa SEM justa causa de quem se recusa a vacinar-se. Neste caso, presume-se que o ato foi discriminatório?

Essa dúvida surge em virtude de a Portaria expressamente vedar a dispensa por justa causa do funcionário que se recusa a vacinar-se, mas nada falar sobre a dispensa sem justa causa.

Sobre o assunto, importante lembrar que ao contrário da dispensa por justa causa – que é uma medida disciplinar, da mais gravosa –, a dispensa sem justa causa se configura como um ato que integra o poder diretivo do empregador, que tem a liberdade de desligar seus funcionários de acordo com a conveniência da empresa.

A dispensa por justa causa, por se tratar de uma medida disciplinar, enseja a perda de uma série de verbas rescisórias, a que o trabalhador deixa de ter direito por ter cometido uma falta grave.

No caso da dispensa sem justa causa, porém, todas as verbas rescisórias deverão ser pagas e, ao contrário da aplicação da justa causa, no desligamento sem justa causa não é necessário que o empregador externe as razões que levaram à demissão.

É claro, porém, que ficando evidente que a dispensa ocorreu em virtude da não vacinação, ainda que se proceda a demissão sem justa causa, tal poderá ser questionada enquanto um ato discriminatório, permanecendo para o empregador a necessidade de demonstrar que a demissão se deu por outras razões.

 

4. Conflito entre a proibição de o empregador dispensar quem se recusa a se vacinar X risco de caracterização de doença ocupacional: o empregador tem seu poder diretivo limitado, mas sofre os ônus de eventual omissão?

O meio ambiente do trabalho saudável não é só um direito dos empregados, como também um dever dos empregadores, o que significa que os empregadores devem seguir diversas normas relativas à saúde e segurança do trabalho para garantir o ambiente do trabalho saudável.

A adoção de medidas de combate e prevenção à Covid-19 é entendida como parte do cumprimento deste dever e, inclusive, eventuais omissões de uma empresa acerca deste cuidado poderiam até mesmo ser levadas à apreciação do Poder Judiciário, ou serem alvos de investigações do Ministério Público do Trabalho.

Decerto, as empresas passaram a ter, durante a pandemia, o dever de adotar em suas dependências o protocolo de combate ao novo coronavírus e a não adoção de tais medidas poderia até mesmo ensejar alguma responsabilização.

Prova disso é que a Justiça do Trabalho de Minas Gerais, ao julgar um caso envolvendo um motorista de uma transportadora que faleceu em virtude da covid-19, reconheceu a doença como acidente de trabalho.

Tendo em vista esse dever de zelar pelo meio ambiente do trabalho saudável, o Judiciário e o MPT vinham consolidando o entendimento de que, além da adoção de medidas sanitárias, como higienização das mãos, disponibilização de álcool, testagem de temperatura, dentre outras, os empregadores deveriam incentivar seus funcionários a se vacinarem.

Por consequência, a recusa em vacinar-se, por representar risco a si próprio e a toda população, configuraria falta grave o suficiente para ensejar (observada a gradatividade) a demissão por justa causa.

Assim, a presença do funcionário não vacinado, representava, até então, um risco para o empregador, que poderia até vir a ser responsabilizado caso este funcionário viesse a contrair o vírus.

Contudo, a Portaria 620 expressamente proíbe a exigência de certificado de vacinação, o que retira dos empregadores, em parte, a possibilidade de cumprir o seu dever de zelar pelo ambiente de trabalho saudável, no aspecto da prevenção à Covid-19.

Limitando-se o poder do empregador de exigir a vacinação e, no limite, de cumprir o seu dever de garantir um meio ambiente do trabalho saudável, a consequência lógica é (ou deveria ser) concluir que ele não poderá mais ser responsabilizado por eventual contaminação, não podendo ser considerada como doença ocupacional a contaminação pela covid-19.

No entanto, seja pela possibilidade de questionamento, pelo Judiciário, do status normativo da portaria, seja pelo que vinham decidindo os Tribunais a respeito da matéria, o risco trabalhista permanece, em grau indefinido, não havendo segurança jurídica para os empregadores. De um lado, se adotarem posturas mais rígidas para exigir a vacinação de seus empregados, os empregadores se submetem ao risco de, com base na portaria, terem sua conduta invalidada, e, de outro lado, caso não exijam vacinação, sejam responsabilizados em ação indenizatória, por não garantirem a saúde dos próprios empregados.

 

5. Conclusão

A publicação da Portaria nº 620 acabou tornando ainda mais nebulosa a definição de como a empresa deve proceder diante do cenário de um funcionário que se recusa a vacinar-se.

Isto porque, o entendimento que a Justiça do Trabalho e o MPT estavam conferindo para a situação, até então, era no sentido de que (i) a empresa deveria estimular a vacinação de seus funcionários e que ii) seria válida a demissão por justa causa de empregado que se recusa a vacinar-se, tendo em vista representar risco ao meio ambiente de trabalho.

Contudo, como a nova portaria considera ato discriminatório a exigência, pelo empregador, de certificado de vacinação do empregado, vedando a dispensa por justa causa pela recusa a vacinar-se, temos dois posicionamentos contraditórios, sendo que nenhum deles possui força de lei.

Assim, diante desse cenário nebuloso, os empregadores devem agir com cautela, sendo importante também permitir o decurso de tempo para saber qual será o entendimento da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho diante da Portaria nº 620.

 

Gabriela Pelles Schneider

Advogada. Mestre em direitos e garantias fundamentais pela FDV.