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20/09/2020

Contratos de transporte de cargas (frete): questões cíveis, tributárias e trabalhistas

Uma das principais etapas de qualquer atividade produtiva é o transporte da produção até distribuidores, varejistas ou até o próprio destinatário final. Hoje, no Brasil, o transporte de quase 82% da carga (exceto grãos e minério) é feito por caminhão, segundo estudo do professor Paulo Resende, da Fundação Dom Cabral.

Esse cenário confere grande importância aos fretes, muitas vezes feitos de maneira informal. O produtor acerta verbalmente ou mediante instrumento escrito simples o pagamento de um valor ao transportador para que sua carga chegue a determinado destino, sem atentar-se a maiores formalidades, à frequência da contratação, ao seguro, ao recolhimento de tributos devidos e afins. A legislação brasileira possui dois principais diplomas regendo o tema: a Lei nº 11.442/2007, que dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração; e o Código Civil, em seus arts. 730 a 733 e arts. 743 a 756. Por isso, a primeira parte deste artigo será designada aos requisitos a serem observados no contrato de transporte de cargas.

 

1 – Características do contrato de transporte de cargas

Em primeiro lugar, o art. 2º da Lei nº 11.442/2007 determina que todo transportador de cargas seja inscrito num registro específico da ANTT como Transportador Autônomo de Cargas (TAC) ou como Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas (ETC). Então, se a intenção é regularizar a contratação do frete, é essencial procurar transportadores devidamente regularizados. Caso contrário, eventuais questões dificilmente conseguem ser resolvidas dentro das previsões mais certeiras de lei específica sobre transporte de cargas.

Em segundo lugar, o art. 6º da Lei nº 11.442/2007 exige que o frete seja feito sob contrato ou Conhecimento de Transporte, que deverá conter informações para a completa identificação das partes e dos serviços e de natureza fiscal. A ausência de contrato escrito celebrado junto ao transportador é problemática, já que, novamente, eventuais questões dificilmente conseguiriam ser resolvidas dentro das previsões mais certeiras de lei específica. De qualquer modo, há decisões do TJ-MG, TJ-SP e TJ-DF {1} reconhecendo contrato verbal de transporte, o que torna outros meios de pactuação – como via WhatsApp – certamente válidos e efetivos e, assim, tuteláveis pelo Judiciário.

Em terceiro lugar, o art. 13 da Lei nº 11.442/2007 determina a contratação de seguro contra perdas ou danos causados à carga, devendo ser feito prioritariamente pelo contratante do transporte. Caso não haja seguro algum, a situação se torna problemática para o produtor por conta do art. 12, inciso I, que preceitua que os transportadores serão liberados de sua responsabilidade em razão de ato ou fato imputável ao expedidor ou ao destinatário da carga. Portanto, se o transportador perder toda a carga e conseguir provar que só não havia seguro devido a uma negativa do contratante, poderia se eximir da responsabilidade pela perda dessa carga, levando o produtor a ficar no prejuízo.

Por fim, o meio de pagamento deverá ser de titularidade do TAC e identificado no conhecimento de transporte, fazendo com que a não emissão do conhecimento de transporte importe pagamento irregular ao transportador. Segundo a Resolução nº 5.862/2011 da ANTT, a responsabilidade pela regularidade do pagamento é do contratante, o que sujeita o produtor a mais de uma multa administrativa de até R$ 10.500,00.

 

2 – Consequências tributárias do transporte de cargas

O principal objetivo do Conhecimento de Transporte é permitir que seja documentada, para fins fiscais, a prestação do serviço de transporte de cargas. É um documento indispensável para o transportador, que deverá recolher os tributos com base nele, e também para o contratante, que é, em algumas hipóteses, responsável pelo recolhimento do ICMS. Quando descumprida a obrigação tributária, o contratante sofrerá risco de autuações fiscais.

 

3 – Consequências trabalhistas do transporte de cargas

A Lei nº 13.103/2015, que dispõe sobre o exercício da profissão de motorista, modificou e acrescentou alguns dispositivos na Lei nº 11.442/2007, tornando-a bastante rígida nos contornos comerciais da relação entre contratante do frete e transportador. O art. 2º prevê que a atividade de transporte de cargas é de natureza comercial, e o art. 5º é ainda mais categórico: “as relações decorrentes do contrato de transporte de cargas de que trata o art. 4º desta Lei são sempre de natureza comercial, não ensejando, em nenhuma hipótese, a caracterização de vínculo de emprego”. Para evitar problemas trabalhistas, é importante sempre estabelecer contratos na modalidade chamada “TAC-Independente”, que a Lei define como o transportador que presta os serviços de transporte de carga em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem.

Em análise de recentes decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho, percebe-se que é bastante incomum o reconhecimento do vínculo empregatício, ocorrendo apenas em situações em que o caminhão pertence à própria empresa que contrata o frete com habitualidade, quando se caracteriza uma relação de subordinação entre o motorista e a empresa contratante.

A discussão relativa à existência de vínculo empregatício entre o transportador autônomo de cargas e a empresa contratante – especialmente quando se trata de empresa atuante no ramo de transporte de cargas – foi analisada recentemente pelo STF. O ponto principal da discussão era exatamente se o art. 5º da Lei 11.442/2007, que estabelece inexistir vínculo de emprego entre o transportador autônomo e a empresa contratante, é constitucional ou não.

A conclusão do STF foi no sentido de que o mencionado artigo é, sim, constitucional. Por consequência, firmou uma tese de que, uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei 11.442/2007, está configurada relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo de emprego. A essa conclusão se chegou, ainda, em momento posterior ao reconhecimento, pelo próprio STF, da possibilidade de terceirização das atividades-fim de uma empresa, sob o fundamento de que o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais nos limites da legislação vigente à época.

Portanto, como regra, não há vínculo de emprego entre o transportador autônomo e a empresa contratante, quando atendidos os requisitos estabelecidos na Lei 11.442/2007.

E quais seriam, então, esses requisitos que, se atendidos, afastariam a existência de relação empregatícia?

A Lei 11.442/2007 determina, como se afirmou acima, que o transportador autônomo seja proprietário, coproprietário ou arrendatário de, no mínimo, 01 (um) veículo automotor de carga. Além disso, exige-se que o transportador comprove experiência mínima de 03 (três) anos na atividade ou que tenha sido aprovado em curso específico. Cumpridos tais requisitos, como regra, não haverá vínculo de emprego.

Vale ressaltar, de todo modo, que o ônus da prova será da empresa tomadora, que deverá apresentar, em eventual ação trabalhista, prova de atendimento dos requisitos exigidos na legislação.

Do ponto de vista trabalhista, outra questão importante merece ser abordada: quando o produtor (ou uma transportadora) contrata uma Empresa de Transporte de Cargas (ETC), há responsabilidade subsidiária quanto às obrigações trabalhistas eventualmente não pagas pela empregadora do motorista?

Em linhas gerais, quando a contratação se der por empresa que não atue no ramo de transportes, o risco tende a ser bastante pequeno (exemplo: o produtor contrata diretamente a empresa de transporte de cargas). Em tais contratações, predomina fortemente o entendimento de que não se trata de terceirização de serviço, mas de contrato de transporte, que tem natureza jurídica comercial. Com base nessa premissa, o Tribunal Superior do Trabalho recentemente deu provimento a um recurso interposto pela ArcelorMittal para afastar sua responsabilidade subsidiária por obrigações trabalhistas da empresa de transportes (RR-10985-37.2017.5.15.0051, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 18/09/2020).

O risco trabalhista é, de algum modo, acentuado quando a empresa contratante também atua no setor de transportes (exemplo: uma transportadora subcontrata uma empresa de transporte de cargas para realizar um frete em favor de algum de seus clientes). Nesses casos, há duas correntes: (i) atribuir responsabilidade subsidiária à empresa contratante, com base na Súmula 331 do TST; (ii) afastar a responsabilidade subsidiária da empresa contratante, já que a pactuação tem natureza comercial. Por enquanto, prevalece o entendimento de que há responsabilidade subsidiária da transportadora por obrigações trabalhistas não cumpridas pela ETC contratada.

 

4 – Consequências cíveis perante terceiros

Imaginemos que houve a contratação informal de um frete e o transportador atropela alguém durante o serviço, ou mesmo colide com outro veículo e o danifica. Na busca da vítima por reparação material e moral, há dois entendimentos possíveis ao Judiciário: o que se atém aos elementos da responsabilidade civil subjetiva (que é o caso, visto inexistir relação de emprego), fazendo com que, ao menos de forma direta, não haja qualquer relação entre o contratante do frete e o dano sofrido por terceiro na realização desse frete; e o que preza pela vítima, ampliando as possibilidades de indenização com base no princípio da subordinação jurídica.

Isso significa o seguinte: há decisões antigas{2} em que o contratante do frete autônomo era eximido de qualquer responsabilidade por acidentes na realização desse frete. O raciocínio é simples, já que, se o transportador não era funcionário do contratante, estando ali por livre e espontânea vontade de uma prestação de serviço comercial, não há como se imputar os danos resultantes dessa prestação de serviço a quem contratou o frete. Isso independe da existência de contrato escrito, basta que os termos sejam claros por outros meios, como mensagens de texto, e-mails ou testemunhas.

Porém, a tendência recente é que a responsabilidade seja solidária entre o contratante e o transportador. Decisões {3} pontuam que há interesse econômico imediato por parte do contratante, além de que o dano decorreu de acidente de trânsito provocado por imprudência do condutor do caminhão que estava a serviço do contratante, vez que transportava a sua carga. Desse modo, haveria subordinação jurídica.

Diante desse risco, recomenda-se confeccionar um contrato escrito com cláusula de exclusão de responsabilidade do contratante por quaisquer danos a terceiros relacionados àquele frete – a cláusula pode ser considerada válida somente entre os contratantes, ensejando ação regressiva. Ademais, é prudente o contratante fazer, documentalmente, uma breve revisão do caminhão que realizará cada frete, com análise do estado dos pneus e da estabilidade da carga sobre a carroceria, sendo tal documento assinado pelo próprio transportador ao final. Além de ter custo zero, essa medida pode afastar acusações de negligência na contratação de um transportador eventualmente imprudente no trânsito.

 

Gabriel Gomes Pimentel

Advogado. Especialista em direito empresarial pela FGV.

 

Lorenzo Caser Mill

 

Referências

[1] TJSP; APL 0003987-83.2014.8.26.0477; Ac. 11716535; Praia Grande; Vigésima Primeira Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Silveira Paulilo; Julg. 14/08/2018; DJESP 28/08/2018; Pág. 2151. / TJSP; APL 0003011-21.2013.8.26.0248; Ac. 9329877; Indaiatuba; Décima Segunda Câmara de Direito Privado; Relª Desª Lidia Conceição; Julg. 06/04/2016; DJESP 14/04/2016. / TJPR; ApCiv 1433576-9; Curitiba; Décima Sétima Câmara Cível; Rel. Juiz Conv. Fabian Schweitzer; Julg. 03/08/2016; DJPR 30/08/2016; Pág. 327.

[2] TJSE; AC 2009211493; Ac. 2121/2010; Primeira Câmara Cível; Relª Juíza Conv. Iolanda Santos Guimarães; DJSE 31/03/2010; Pág. 4. / TJ-SP – APL: 00457154720088260564 SP 0045715-47.2008.8.26.0564, Relator: Luis Fernando Nishi, Data de Julgamento: 16/04/2015, 32ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/04/2015.

[3] TJMG; APCV 0020570-86.2012.8.13.0474; Paraopeba; Décima Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Marco Aurelio Ferenzini; Julg. 28/11/2019; DJEMG 06/12/2019. / TJSC; AC 0002632-24.2013.8.24.0026; Guaramirim; Sexta Câmara de Direito Civil; Relª Desª Denise Volpato; DJSC 10/10/2019; Pag. 181. / TJ-RS, Apelação Cível nº 70074523705, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, Julgado em 13/06/2018.