Publicações

13/04/2020

Regime jurídico emergencial: os impactos do PL nº 1.179/2020 sobre os prazos prescricionais e de usucapião, a desoneração de responsabilidade contratual e os contratos de locação imobiliária

A pandemia provocada pelo novo coronavírus demandou medidas legislativas emergenciais por parte do Congresso Nacional, dado o caótico reflexo gerado pela doença nas relações econômicas e sociais. Enquanto criação humana, o direito inevitavelmente precisa responder às rupturas e às necessidades da sociedade.

Se milhões de pessoas são postas em quarentena integral ou vertical, as relações cotidianas serão afetadas, sobretudo as que envolvem geração e troca de valores pecuniários entre os indivíduos. E, se essas relações ganham novos contornos, o direito as acompanha e busca normatizar tais contornos. Com essa premissa, podemos entender e justificar o Projeto de Lei nº 1.179/2020, denominado correntemente como Regime Jurídico Emergencial para questões de direito privado.

Por sinal, a justificação contida na minuta do Projeto de Lei menciona medidas legislativas recentemente tomadas pelos parlamentos britânico, alemão e norte-americano. A ênfase de algumas dessas medidas emergenciais, como as aprovadas pelo parlamento alemão, dá-se em setores do direito privado, de modo a preservar as relações jurídicas, paritárias ou assimétricas, comprometidas pelo cenário social disruptivo.

O PL já foi aprovado em plenário pelo Senado, passando agora ao plenário da Câmara na condição de casa legislativa revisora. Caso não sejam feitas novas emendas ao texto, a própria Câmara concluirá a votação e, assim, delimitará o texto, que, enfim, passará pela sanção do Poder Executivo. Espera-se que o término dos trâmites se dê até a próxima semana, com vigência imediata do texto aprovado.

De início, vale frisar que o PL não busca alterar qualquer lei atualmente vigente; pretende, em verdade, instituir normas de caráter transitório e emergencial às relações jurídicas de direito privado no período em que perdurar a pandemia. Assim, caso seja o texto aprovado pelo plenário da Câmara em seu conteúdo atual, as disposições transitórias incidirão sobre o Código Civil (Lei nº 10.406/2002), o Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), a Lei de Locações (Lei nº 8.425/1991), o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), a Lei de Direito Concorrencial (Lei nº 12.529/2011), o Código Brasileiro de Trânsito (Lei nº 9.503/1997), e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). Repita-se: nenhuma dessas leis será permanentemente alterada, mas tão somente terá sua aplicação modificada temporariamente.

A seguir, passaremos a um panorama elucidativo a respeito de três dos principais temas trazidos pelo Projeto de Lei: o impedimento ou a suspensão dos prazos prescricionais e de usucapião; a delimitação dos conceitos de caso fortuito e força maior para as obrigações vencidas no curso da pandemia; e a alteração de contratos de locação imobiliária.

Antes, porém, vamos brevemente entender os termos inicial e final para produção dos efeitos por parte das normas a serem instituídas.

 

1 – Marco temporal

Estipula-se a data de 20 de março de 2020, dia da publicação do Decreto Legislativo Federal nº 6 – que reconheceu, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, o estado de calamidade pública em território nacional –, como termo inicial dos eventos relacionados à pandemia no País.

Embora o mencionado decreto tenha efeitos práticos apenas no âmbito fiscal, entende-se que somente a partir dessa data estão oficialmente reconhecidos os efeitos jurídico-sociais da pandemia no Brasil, não se aplicando qualquer disposição de forma retroativa. Portanto, será este também o termo inicial de vigência do texto aprovado.

Nas Disposições Finais do texto, faltou ao PL fixar uma data final para a sua vigência, com eventual possibilidade de prorrogação. Criar-se um regime jurídico para o período da pandemia, caracterizado pela emergência e pela transitoriedade, sem dia certo (ou seja, efetivamente um termo) para findar parece desaconselhável, pois dá azo a todo tipo de discussão futura sobre a permanência de suas normas em vigor.

 

2 – Impedimento ou suspensão dos prazos prescricionais e de usucapião

O caput do artigo 3º do Projeto de Lei estabelece que os prazos prescricionais considerar-se-ão impedidos (quando o prazo prescricional sequer iniciou a sua contagem) ou suspensos (uma vez retomada a contagem, leva-se em conta o período anteriormente transcorrido), conforme o caso, até 30 de outubro de 2020. Vê-se que, mesmo com a ausência de um termo final geral para o Projeto de Lei, algumas disposições específicas receberam um prazo de aplicação previamente definido.

No entanto, o parágrafo 1º impõe uma relevante limitação ao dispositivo: as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas nas demais leis nacionais devem prevalecer sobre o impedimento ou a suspensão determinados no caput. Assim, por exemplo: o protesto cambial continuará a interromper o prazo prescricional, na forma do artigo 202, III, do Código Civil, que prevalece sobre o texto do Regime Jurídico Emergencial.

De todo modo, uma vez superadas as demais hipóteses especificamente reguladas em outros diplomas, aplica-se a regra geral de impedimento ou suspensão a que faz referência o caput do artigo 3º. Basicamente, significa que, se uma das hipóteses específicas for superada em abril, por exemplo, o prazo prescricional será considerado iniciado ou retomado somente em 30 de outubro de 2020.

Fica evidente, então, a natureza complementar e subsidiária do PL quanto à suspensão e ao impedimento dos prazos prescricionais. Buscou o legislador estipular tal suspensão ou impedimento unicamente em casos que não estejam abarcados por normas específicas, especialmente do Código Civil. Para efeitos práticos, deve-se atentar aos casos que fogem aos artigos 197 a 204 do Código Civil, que versam principalmente sobre incapazes, ausentes, fatos necessariamente apurados em juízo criminal, condições contratuais suspensivas e afins.

Destaca-se, ainda, a opção legislativa por não estabelecer a interrupção dos prazos como consequência da pandemia. O artigo 3º não considera interrompidos os prazos prescricionais, mas tão somente impedidos ou suspensos. Assim, uma vez exaurido o prazo limite a que faz referência o caput do artigo 3º (30.10.2020), retomar-se-á a contagem do prazo prescricional do ponto em que parou, considerando os dias previamente transcorridos, caso se trate de hipótese de suspensão do prazo prescricional.

De mais a mais, vale mencionar a questão da usucapião, prevista no artigo 10 do Projeto de Lei. A usucapião é regularmente considerada uma espécie de prescrição aquisitiva, que é aquela que consiste não na perda, mas na aquisição de um direito sobre um bem pelo decurso do prazo. É instituto relacionado, exclusivamente, aos direitos reais sobre as coisas, sejam elas móveis ou imóveis.

O sobredito dispositivo determina que ficam suspensos os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, até 30 de outubro de 2020. Trata-se, ao nosso ver, de apenas um reforço do que já havia sido previsto no artigo 3º, que suspendeu os prazos prescritivos em geral, tendo em vista, inclusive, que as causas de impedimento, suspensão ou interrupção da prescrição se aplicam à prescrição, nos termos do artigo 1.244 do Código Civil.

Por fim, o parágrafo 2º do artigo 3º do PL enuncia que aplicam-se essas regras aos prazo de decadência, conforme ressalva prevista pelo artigo 207 do Código Civil. A ressalva é importante porque o artigo 207, ao dizer que não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, deixa claro que a lei pode instituir norma em sentido contrário, que é exatamente o que se terá com o texto do PL aprovado.

Sem dúvidas, o afastamento dos prazos prescricionais, decadenciais e de usucapião viabiliza a canalização dos esforços para as questões regionais e nacionais mais urgentes, sem prejuízo da possibilidade de se resolver o conflito no futuro. Trata-se de interessante e proveitosa iniciativa.

 

3- Caso fortuito e força maior nas relações contratuais

O caso fortuito e a força maior, conceitos que, na prática, não guardam diferenças relevantes, são mencionados na justificativa do Projeto de Lei para fins de orientação na revisão, na resilição e na resolução de contratos.

Apenas a título de reforço, o caso fortuito e a força maior são hipóteses de exclusão ou desoneração da responsabilidade contratual. Isto é, como consistem em situações lesivas irresistíveis e, geralmente, imprevisíveis, acabam por justificar o inadimplemento de uma obrigação, sem maiores consequências jurídicas para a parte inadimplente. Exemplos corriqueiros são pestilências no campo e no meio urbano, desastres ambientais com interferência humana e, inclusive, catástrofes econômicas de ampla dimensão – não meras crises, ressalte-se.

O artigo 6º veda efeitos jurídicos retroativos sobre as consequências decorrentes da pandemia na execução dos contratos, incluindo as previstas no artigo 393 do Código Civil. Desse modo, ao mesmo tempo em que o legislador classifica a pandemia do novo coronavírus como hipótese de reconhecimento de caso fortuito ou força maior, desautoriza a aplicação do dispositivo às obrigações vencidas antes do reconhecimento oficial da pandemia – ou seja, antes da publicação do decreto certificador do estado de calamidade pública, em 20 de março de 2020.

De toda sorte, parece-nos que o disposto no artigo 6º do PL não deve representar uma proibição absoluta de se considerar a pandemia como caso fortuito ou força maior em inadimplementos contratuais anteriores à data de 20.03.2020. Bastaria, para tanto, comprovar efetivamente que, mesmo antes desta data, o descumprimento de determinada obrigação tenha decorrido, de modo incontornável, das complicações causadas pela pandemia.

Isso ganha notoriedade, por exemplo, em contratos de transporte de cargas ou mesmo de passageiros, vez que algumas estradas, ferrovias e pontes aéreas se viram parcial ou totalmente bloqueadas desde o início da confirmação de casos da doença. Afinal, a restrição da circulação intermunicipal e interestadual de pessoas é, sem dúvidas, um dos pilares no combate à propagação do vírus.

Para se ter uma ideia, os primeiros casos de transmissão comunitária no Brasil foram atestados pelas autoridades sanitárias ainda na primeira quinzena de março. Dito isto e considerando, ainda, a ausência de indicação expressa de termo final para a vigência do artigo 6º – contrariamente ao observado nos dispositivos vertentes à suspensão e ao impedimento dos prazos prescricionais –, percebe-se que o critério a ser acatado pelo Judiciário para a desoneração de responsabilidade contratual pode, de fato, ser a prova inconteste de que o inadimplemento se deu em razão da pandemia do novo coronavírus, mesmo antes da decretação do estado de calamidade.

A diferença é que, tendo sido formalmente decretado o estado de calamidade em 20.03.2020, deve-se presumir, a partir desta data, a existência de caso fortuito ou de força maior apto a justificar o descumprimento contratual, presunção esta que deve ser devidamente afastada pela parte contrária. Por outro lado, para situações anteriores ao dia 20 de março, cabe ao devedor efetivamente comprovar a concreta e irresistível impossibilidade de dar cumprimento a determinada obrigação.

O artigo 7º, por fim, dá prova de cautela e de prudência na resposta legislativa à crise sanitária, definindo as circunstâncias possivelmente ligadas à pandemia que não constituiriam “fatos imprevisíveis” para autorizar a rescisão ou revisão contratual. São eles: aumento da inflação, variação cambial e desvalorização ou substituição do padrão monetário. Esse é um padrão outrora adotado pelos tribunais brasileiros para resolver questões contratuais emergidas de sucessivos planos econômicos.

 

4 – Contratos de locação imobiliária

Os impactos nos contratos de locação imobiliária, seja ela residencial ou comercial, são um dos mais controversos pontos do Projeto de Lei desde o início de sua tramitação. Inicialmente, o capítulo destinado às locações de imóveis urbanos continha os artigos 9º e 10 como disposições, mas este último acabou suprimido pela relatora, Senadora Simone Tebet, ao acolher as emendas nº 2, do Senador Oriovisto Guimarães, e nº 16, do Senador Major Olímpio em conjunto com o Senador Oriovisto Guimarães.

O mencionado artigo 10 contemplava a possibilidade de suspensão do pagamento de aluguéis residenciais vencíveis entre 20 de março e 20 de outubro de 2020, quando o locatário sofresse alteração econômico-financeira decorrente de demissão, redução de carga horária ou diminuição de remuneração. Bastaria, para tanto, que o inquilino comunicasse ao locador que optou pela suspensão. A solução prevista no parágrafo 1º do dispositivo seria o pagamento parcelado dos alugueres vencidos, a partir de 30 de outubro de 2020, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos.

Ou seja, caso optasse pelo direito potestativo outrora previsto no PL – potestativo porque seu exercício não dependeria de qualquer manifestação de vontade do locador, bastando que fosse ele devidamente comunicado –, o inquilino poderia ter de pagar, durante vários meses, parcela correspondente a mais que o dobro do valor originariamente pactuado (20% do total da dívida referente aos alugueres atrasados, possivelmente em sete meses). Tal situação traria o risco de não resolver o conflito, mas tão somente adiá-lo, inclusive em condições agravadas.

Mas, enfim, o dispositivo foi suprimido. Quanto ao restante, o artigo 9º veda, em diversas situações, a concessão de liminares para desocupação de imóveis urbanos em ação de despejo até 31 de dezembro de 2020 – vê-se, novamente, a previsão de um prazo específico para a medida instituída. Basicamente, o inquilino não poderá ser despejado por falta de pagamento até o final deste ano, independentemente de qual seja a razão da inadimplência. Fica proibido, ainda, o despejo liminar em outras situações que nada tem a ver com a falta de pagamento, como, por exemplo, o término do prazo da locação comercial.

Muito embora a proposta transpasse nobreza em suas intenções, questiona-se se seria adequada a proibição da liminar de modo tão abrangente como se prevê no PL. Haveria sentido na proibição do despejo por falta de pagamento, por exemplo, mas não em outras hipóteses que não tenham relação com fatores econômicos e com a justificação indicada no Projeto de Lei. Assim, nessa linha, qual o sentido de o locador não poder se valer da medida liminar de despejo em hipótese na qual tenha terminado o prazo da locação sem que houvesse a renovação entre as partes?

Além disso, como já observado por outros autores, o perfil do locador imobiliário brasileiro não é uniforme, podendo variar entre sociedades patrimoniais, potencialmente mais resistentes à falta de pagamento, e pessoas idosas que fizeram da aquisição de imóvel um meio de garantia da sua subsistência.

Enfim, esses são os nossos comentários, observações e sugestões a esse importante Projeto de Lei, que chega em momento oportuno com o intuito de zelar pela estabilidade das relações sociais e pela segurança jurídica.

 

Thiago Ferreira Siqueira

Advogado. Professor da graduação e do mestrado da Ufes. Doutor em direito processual civil pela USP.

 

Lorenzo Caser Mill

Advogado graduado pela Ufes. MBA em agronegócios pela USP/Esalq. Especialista em falência e recuperação de empresas pela FGV/SP.