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11/06/2020

Privilégios bancários na falência e na recuperação de empresas

O microssistema falimentar e recuperacional apresenta uma série de privilégios bancários, sobretudo quanto aos efeitos que a decisão constitutiva da falência ou constitutiva do processamento da recuperação judicial opera sobre o patrimônio e os contratos da sociedade ou do empresário individual, consubstanciados nos créditos a serem pagos no decorrer do procedimento.

Na recuperação judicial, a prerrogativa central é a denominada “trava bancária”, uma exceção ao stay period de 180 dias em prol dos contratos de mútuo bancário garantidos pela cessão fiduciária dos recebíveis do devedor, performados e não performados; e, na falência, é a restituição dos valores adiantados – emprestados – pelas instituições financeiras para os exportadores, nas modalidades de adiantamento de contrato de câmbio e adiantamento de cambiais entregues (ACC e ACE), restituição esta que exclui o bem mobiliário da massa falida objetiva e, assim, não o submete à preferência de pagamento dos créditos prevista no art. 83 da Lei nº 11.101/2005.

Vamos, pois, esmiuçar ambos os institutos, perpassando uma breve noção introdutória acerca do estado falimentar e do estado de recuperação judicial.

 

1. A “trava bancária” e suas inconsistências doutrinárias, legislativas e econômicas

No Brasil, o ordenamento jurídico contempla duas medidas judiciais com o objetivo de evitar que a crise na empresa acarrete a falência de quem a explora – tome-se empresa, aqui, como a atividade empresarial, e quem a explora como o preceptor dessa atividade, ou seja, a sociedade empresarial ou o empresário individual. De um lado, a recuperação judicial; de outro, a homologação judicial de acordo de recuperação extrajudicial. Os propósitos são iguais: saneamento da crise econômico-financeira e patrimonial, preservação da atividade econômica e dos seus postos de trabalho, bem como o atendimento aos interesses dos credores. Recuperada, a empresa – agora em seu sentido corriqueiro – poderá cumprir sua função social.

A recuperação judicial tem natureza jurídica contratual – trata-se de negócio jurídico material submetido ao rito processual – e, uma vez aprovado o plano de recuperação, opera-se a novação dos créditos nele incutidos, por força do art. 59 da Lei nº 11.101/05. Isso significa que, caso tenha havido sujeição convencional ao plano de recuperação, o crédito passa a obedecer a prazos, condições de pagamento etc. inteiramente novos e peculiares, dada a “substituição” das obrigações acessórias originariamente previstas. Vale lembrar que aqueles créditos não incluídos no plano conservarão suas obrigações nos moldes outrora pactuados (art. 49, § 2º).

Porém, conquanto possa não se observar uma sujeição convencional de determinado crédito ao plano, há sujeição legal de todos os créditos relacionados àquela empresa aos efeitos do deferimento do pedido de recuperação; afinal, o art. 49 preconiza que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos vencidos e vincendos existentes na data do pedido. E um desses efeitos, quiçá o mais relevante, é o stay period, que é a suspensão das ações e execuções em trâmite contra o devedor pelo prazo de 180 dias[1], na forma do art. 52, inciso III junto ao art. 6º, § 4º, ambos da Lei nº 11.101/05. Por óbvio, evitando arbitrariedades, são igualmente suspensos os prazos prescricionais dos créditos.

Esse prazo, em tese improrrogável, é vital para que a recuperanda, em conjunto com o administrador judicial e demais profissionais auxiliares, elabore o plano de recuperação judicial e apresente-o à assembleia de credores, bem como para que tal assembleia o debata, promova nele alterações ou até apresente um substitutivo. Ao cabo do prazo, com a anuência do órgão representativo da vontade majoritária dos credores – ressalvada a hipótese de aprovação cram down (art. 58, § 1º) –, será prolatada sentença de concessão da recuperação judicial, iniciando, dessarte, o biênio de supervisão judicial à recuperação da empresa.

Entendida a relevância do stay period, compreende-se também a gravidade que significa a exceção da “trava bancária”, consequência das vedações previstas no § 3º do art. 49. Os contratos de mútuo bancário garantidos pela cessão fiduciária dos recebíveis do devedor nada mais são do que empréstimos contraídos pela empresa dando em garantia créditos a serem recebidos, sejam eles provenientes de cártulas – duplicadas mercantis, notas promissórias, cédulas de crédito industrial etc. – ou mesmo de negócio algum, os chamados “créditos vazios”. Basicamente o seguinte: a instituição financeira empresta a quantia sob a condição de que o próximo montante “X” a ingressar nos cofres da empresa, seja ele qual for, será destinado à quitação do empréstimo. É fácil perceber, portanto, que contratos dessa estirpe podem comprometer grande parte ou até a integralidade dos ativos circulantes e não-circulantes da empresa.

Várias teses buscando desconstituir a “trava bancária” foram apreciadas pelos tribunais brasileiros nos últimos anos, submetendo os créditos desses contratos de mútuo aos efeitos do processo de recuperação judicial e, por consequência, liberando esse fluxo de recebíveis para a utilização no capital de giro dos devedores. Destacaremos quatro delas, sem grande aprofundamento teórico pela restrição que o espaço nos impõe: i) a natureza pignoratícia da garantia, e não fiduciária; ii) a ausência de registro do contrato, condição necessária para a constituição da propriedade fiduciária; iii) a violação da teoria da preservação da empresa; e iv) ausência do requisito da especificidade necessário à constituição da fidúcia.

Quanto à suposta natureza pignoratícia – isto é, o mútuo garantido pela cessão de créditos futuros teria natureza de penhor –, diz-se que a norma insculpida no § 3º do art. 49, por especificar os créditos excluídos da recuperação judicial, encerra situação excepcional, devendo ser interpretada restritivamente. Nesse contexto, a propriedade fiduciária de bem móvel referida no aludido dispositivo legal não equivaleria à cessão fiduciária de recebíveis, já que a titularidade dos direitos creditórios não sai da esfera patrimonial do devedor – condição necessária à constituição de propriedade fiduciária, um direito real. Vale a citação de uma passagem de Melhim Chalhub:

“Em atenção às distintas conformações patrimoniais da cessão fiduciária e do penhor, a lei dá tratamento diferenciado aos efeitos de cada uma dessas espécies de garantia. Com efeito, no penhor o devedor empenha o crédito e o conserva em seu patrimônio, mas na cessão fiduciária transmite o direito creditório ao cessionário-fiduciário, demitindo-se da titularidade do direito cedido (Lei nº 9.514/97, art. 18). Dados esses distintos efeitos patrimoniais, na hipótese de recuperação de empresa, se se tratar de créditos empenhados, o produto da sua cobrança será depositado e mantido em conta vinculada (art. 49, § 5º), mas se se tratar de créditos cedidos fiduciariamente, seu produto será apropriado pelo cessionário-fiduciário, até o limite de seu crédito (art. 49,§ 3º)”.

(CHALHUB, Melhim Nanem. Negócio Fiduciário. 4ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 360-361).

Em relação à ausência de registro, o raciocínio é mais simplório: o registro perante o Oficial de Registro de Títulos e Documentos seria requisito necessário para a eficácia da propriedade fiduciária, porquanto trata-se de transferência resolúvel de titularidade que guarda interesse público, dado o caráter erga omnes desse direito real. Sem o registro cartorário – ou seja, um registro público –, não haveria como a pretensa propriedade fiduciária produzir efeitos em face de terceiros.

Quanto à violação do princípio da preservação da empresa, a discussão ganha contornos mais pragmáticos do ponto de vista da viabilidade econômico-financeira da empresa, ou até mesmo um tom axiológico sobre “justiça” em relação aos demais credores. Em suma, a finalidade precípua da recuperação judicial é viabilizar o soerguimento e reestruturação da empresa recuperanda, preservando concomitantemente o interesse daqueles atingidos por sua debilidade financeira – trabalhadores, credores e sociedade. Assim, é essencial que se mantenha o lapso temporal para a elaboração de plano de saneamento, bem como as medidas legais inibitórias da redução do seu patrimônio por atos de constrição no período.

Por fim, a ausência do requisito da especificidade necessário à constituição da fidúcia é a única tese que ainda não conta com posicionamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça – as outras três foram rechaçadas em julgados recentes. Basicamente, defende-se que a ausência de descrição dos bens afetados não atende aos requisitos previstos no art. 1.362, inciso IV, do Código Civil e no art. 66-B da Lei nº 4.528/1965, dado que os referidos dispositivos exigem que o contrato vertente à propriedade fiduciária contenha a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação. Desse modo, aqueles contratos de mútuo que deixaram de discriminar os direitos creditícios que seriam objeto da cessão fiduciária – contratos de “crédito vazio”, por exemplo – não poderiam ser tratados sob os ditames da fidúcia e, assim, excluídos dos efeitos da recuperação judicial

 

2. Direito de restituição de valores mutuados por instituições bancárias na falência

Eventualmente, algum bem ou direito de terceiro pode vir a ser arrecadado em uma falência. Nessas situações, cabe ao interessado solicitar ao juízo da falência o desfazimento da arrecadação por meio da ação de restituição, cuja primazia é absoluta sobre qualquer outro direito perseguido no processo de falência, até mesmo sobre os créditos trabalhistas.

A ideia é clara: se sou proprietário de um imóvel que estava locado ao falido e tal bem foi acidentalmente arrecadado para compor a massa falida objetiva, devo pleitear a restituição imediata desse bem. O mesmo raciocínio se aplica a um carro em posse do devedor fiduciante que foi à falência; o banco, nesse caso, detém direito de sequela em razão da sua titularidade resolúvel sobre o bem móvel.

O transtorno se dá em razão de uma opção política do legislador: como incentivo às exportações e buscando a redução dos spreads bancários nos contratos de empréstimos dentro desse segmento, os valores mutuados pelas instituições financeiras para os exportadores, nas modalidades de adiantamento de contrato de câmbio e adiantamento de cambiais entregues (ACC e ACE), em caso de falência do mutuário, poderão ser restituídos (art. 86, inciso II), nos moldes exatos dos pedidos de restituição fundados em propriedade ou outro direito real sobre o bem[2]. O tema foi pacificado pela Súmula nº 307 do Superior Tribunal de Justiça.

Algumas ações constitucionais já foram intentadas contra o entendimento do STJ ou diretamente contra o texto legal. Um exemplo é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 312, em que a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec) alegou que os bancos são os primeiros credores a receber seus valores das massas liquidandas ou falidas, à frente, inclusive, dos credores de natureza trabalhista – constitucionalmente superprivilegiados –, violando preceitos fundamentais e constitucionais de proteção ao trabalho e salário. Recentemente, o STJ ampliou o entendimento ao definir que tal preferência também se aplica aos casos de recuperação judicial de cooperativas, em mais um posicionamento classificado como “ofensivo à proteção judicial dos salários” pela ADPF. O caso segue pendente de julgamento pelo Plenário, mas a demanda foi parcialmente inadmitida em razão da impropriedade da ADPF para versar sobre ato do poder público sem caráter formalmente vinculante, como é o caso das súmulas jurisprudenciais do STJ. Enfim, a questão também é tema da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3234, ajuizada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais e igualmente pendente de julgamento, com relatoria do Ministro Edson Fachin.

Longe de adentrar as ditas inconstitucionalidades da prescrição legal e do entendimento jurisprudencial, entendemos que, de fato, trata-se mais de opção política e menos de atenção à adequada técnica jurídica. Isso porque o mútuo feneratício gera obrigações pessoais, e não reais; o direito de restituição se ancora fundamentalmente no direito de sequela oriundo da propriedade, de modo que o empréstimo de coisa fungível (bens móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade) jamais poderia sobre ela constituir um direito de sequela do mutuante ou emprestador.

 

3. Conclusão

As medidas acima esmiuçadas constituem inequívocos privilégios das instituições financeiras no desenrolar do processo de falência e do processo de recuperação judicial. Embora questionáveis do ponto de vista legal, doutrinário e econômico, todas elas advêm de previsões da Lei nº 11.101/2005, principal diploma regente do microssistema falimentar e recuperacional brasileiro. E isso leva à conclusão de que o direito é inevitavelmente sujeito à vontade política do legislador infraconstitucional, que reduz ao texto legal anseios de conteúdo econômico ou cultural do tecido social. Cabe ao controle de constitucionalidade dos tribunais, então, filtrar essa vontade política e analisar seu enquadramento ao sistema jurídico, norteado pela Constituição.

 

Lorenzo Caser Mill

 

Thiago Ferreira Siqueira

Advogado. Pós-doutor em direito processual civil pela Ufes.

 

Referências

[1] Há discussão quanto ao prazo ser contado em dias úteis ou corridos. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a contagem em dias corridos apesar do art. 219 do CPC/15, admitindo a autonomia do microssistema falimentar e recuperacional.

[2] Inclusive, de igual forma estão excluídos esses créditos dos efeitos da decisão constitutiva de processamento da recuperação judicial (art. 49, § 4º).