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10/08/2020

Investimento em startups: medidas societárias para viabilizar o investimento-anjo, o venture capital e o mútuo conversível

Startup é uma empresa jovem com um modelo de negócios repetível e escalável, de natureza disruptiva e inovadora, que é construída em meio a um cenário de incertezas e soluções a serem desenvolvidas. Embora a incerteza condene grande parte das iniciativas a se tornarem rapidamente inviáveis, a escalabilidade permite grande crescimento de receita acompanhado de uma lenta evolução dos custos, tornando a margem de retorno cada vez maior e possibilitando reinvestimentos no crescimento da empresa. A repetibilidade, por sua vez, proporciona a entrega do mesmo produto em escala potencialmente ilimitada, sem muitas customizações ou adaptações para cada cliente.

No entanto, o pouco tempo de atuação junto ao mercado e o reduzido capital social impõem óbices à operação das startups em sua máxima capacidade criativa, fechando prematuramente horizontes que poderiam estar sendo explorados – já tratamos, aqui, sobre empecilhos enfrentados na contratação junto ao poder público. A solução para ao menos um dos problemas apontados (baixo capital social, o que dificulta o aumento da capacidade produtiva e a contratação de pessoal qualificado) pode estar em alguma das modalidades de aporte de capital nessa nova empresa, mediante participação societária. Ou seja: o investidor, seja ele pessoa física ou jurídica, injeta dinheiro na empresa e recebe como garantia de pagamento ou como pagamento propriamente dito uma parcela dessa empresa (quotas ou ações).

Trataremos, neste texto, de três modalidades e da respectiva forma de realização do investimento, bem como das alterações na estrutura e no quadro societários que dele decorrem: i) investimento-anjo, ii) venture capital e iii) mútuo conversível.

 

Investimento-anjo e a sociedade em conta de participação

Investidores-anjo são pessoas físicas[1] – ao contrário de aceleradoras e incubadoras, pessoas jurídicas – que aplicam o próprio patrimônio em empresas com alto potencial de retorno. Além de ajudar financeiramente a startup, a experiência e os contatos trazidos pelo investidor podem impulsionar decisivamente o negócio. Esse investimento costuma ser feito na transição do early stage para uma fase de mais impacto da startup no mercado, ou seja: ainda é um investimento típico da fase inicial, mas não contempla negócios demasiadamente prematuros e sem consolidação em seu nicho de mercado.

Então, como uma pessoa física que não possui interesse na gestão do negócio e tampouco pretende participar da tomada de decisões da empresa poderia realizar o aporte? A sociedade em conta de participação, disposta no art. 991 e seguintes do Código Civil, parece ser a melhor solução.

Alguns autores da área chegam a dizer que a conta de participação não passa de um contrato de investimento comum que o legislador optou por determinar como sociedade. Suas marcas características são a despersonalização (ela não é pessoa jurídica e independe de qualquer formalidade, podendo a sua existência ser provada por todos os meios de direito) e a natureza secreta (seu ato constitutivo não precisa ser levado a registro na Junta Comercial), e a constituição se dá da seguinte forma: uma startup, na condição de sócia ostensiva, associa-se a investidores – os sócios participantes ou ocultos – para a exploração de uma atividade econômica. A startup seguirá com suas atividades da maneira que preferir e com suas próprias estratégias de gerenciamento do negócio, enquanto os sócios ocultos são obrigados a aportar determinadas somas e têm direito a uma participação nos resultados, a ser definida no contrato social ou em eventual acordo de quotistas.

Os terceiros com quem o sócio ostensivo contratou na exploração da atividade econômica, diante de qualquer problema, não têm como agir contra o sócio oculto, pois obriga-se perante terceiro tão somente o sócio ostensivo.  Já o sócio oculto obriga-se exclusivamente perante o sócio ostensivo, nos termos do contrato social ou do acordo de quotistas. Traduzindo: se um indivíduo comprar algo da sociedade em conta de participação da qual a startup é sócia ostensiva e não receber o produto combinado, terá ele como agir somente contra a startup, blindando-se o investidor que figura como sócio oculto. E, se o contrato social ou o acordo de quotistas previr que o sócio oculto deverá aportar uma quantia “X” e este não o fizer, poderá sofrer medidas judiciais por parte da startup devido ao inadimplemento contratual.

 Enfim, nunca é demais ressaltar: essa modalidade de investimento é destinada àquelas pessoas sem interesse em atuar diretamente na atividade explorada pela startup. Nesse sentido, o parágrafo único do art. 993 do Código Civil é claro: sem prejuízo do direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais, o sócio oculto não pode tomar parte nas relações do sócio ostensivo com terceiros, sob pena de responder solidariamente com este pelas obrigações em que intervier.

Resumo da constituição da sociedade em conta de participaçãostartup na forma de empreendedor individual ou pessoa jurídica encontra pessoa física interessada em realizar aportes financeiros para futuramente auferir participação nos resultados. Embora não seja obrigatório, é confeccionado um contrato formalizando a sociedade em conta de participação e definindo direitos e deveres do sócio ostensivo e do sócio oculto. Pode haver a confecção de acordos de quotistas com maior detalhamento dos direitos e deveres, tais como o montante a ser aportado pelo sócio oculto e o percentual dos resultados a que terá direito.

 

Venture capital, sociedade limitada e sociedade anônima de capital fechado

Venture capital é uma modalidade de investimento focada em empresas de até médio porte, cujo objetivo não é apenas injetar capital na startup para ajudá-la a crescer, mas também influenciar diretamente a gestão do negócio, contribuindo para a criação de valor com vista à futura venda de participação societária na empresa. Já percebemos que, aqui, a participação societária é garantia de pagamento do investidor, pois suas quotas ou ações – a depender do tipo societário adotado – serão obrigatoriamente “vendidas de volta” – a chamada “retrovenda” – aos sócios fundadores quando alcançarem um valor previamente estabelecido. São, portanto, três etapas consecutivas e interativas: contratação, monitoramento e desinvestimento.

venture capital pode ser aportado por companhias de participações; por Fundos de Investimento em Participações (FIPs), que são condomínios gerenciados por experts e voltados a essa finalidade; e por investidores individuais que disponham de amplo capital – hipótese menos usual. Então, teremos uma pessoa jurídica procurando um modelo de participação societária hábil a lhe permitir aportar um grande volume de capital, influenciar diretamente a atividade econômica praticada pela startup e, no fim, revender sua participação para os sócios fundadores, recuperando o investimento inicial e auferindo uma boa margem de lucro. Dito isso tudo, como estruturar e viabilizar essa operação?

A tipologia societária fechada – não mais se admitem tipos societários atípicos no direito brasileiro, ou seja, uma pessoa jurídica não pode se constituir sob uma estrutura inovadora e pensada de modo singularizado – força empreendimentos de venture capital a se adaptar a algum dos tipos encontrados no Código Civil ou na Lei nº 6.404/76, ainda que não sejam os mais adequados à limitação dos riscos que permeiam o negócio. Desse modo, entendemos, sob uma perspectiva residual – isto é, descartando todos os demais tipos por apresentarem mais desvantagens –, que as startups receptoras de venture capital devem se (re)estruturar como sociedade limitada ou como sociedade anônima de capital fechado.

As sociedades anônimas (companhias) fechadas são aquelas cujos valores mobiliários de sua emissão são negociados de forma privada, sem intermediação de bolsa de valores ou de mercados organizados. Isso é vantajoso pois permite à sociedade selecionar novos sócios em meio aos interessados, ao mesmo tempo em que viabiliza a divisão da empresa em percentuais muito menores do que o faz uma limitada. Já a sociedade limitada possui capital social dividido em quotas, a serem negociadas de forma privada e sem intermediação, e apresenta uma estrutura de direção e gestão mais rígida, que confere um forte caráter “pessoal” à empresa. Enfim, ambas detêm personalidade jurídica e funcionam como um centro de imputação autônomo, contratando com terceiros em nome próprio e respondendo pelas obrigações com seus bens, que são distintos daqueles pertencentes aos sócios.

Fernando César Nimer Moreira da Silva,[2] em sua tese de doutorado a respeito do venture capital, apontou que a maioria dos entrevistados exige a transformação de sociedades limitadas em anônimas como condição para viabilização do investimento em projetos de venture capital, já que as limitadas apresentam regras mais rígidas e complexas do que as aplicáveis às sociedades anônimas. Ademais, o autor enumera riscos do negócio que são mitigados na estrutura de sociedade anônima, com destaque para a questão da integralização do capital: nas limitadas, buscando proteger a sociedade e os credores, há solidariedade dos sócios para a integralização dos bens conferidos ao capital social, em até 5 anos. Há apenas dois tipos de sócio no negócio de venture capital – o investidor e o empreendedor; logo, o inadimplemento do empreendedor amplia a responsabilidade do investidor para a totalidade do capital necessário, com o gravame de que, nas limitadas, é vedada a contribuição ao capital social somente com serviços. Se a startup, que figura como sócio empreendedor, puder contribuir apenas com sua operação cotidiana (ou seja, com seu serviço), torna-se difícil a constituição de uma sociedade limitada.

Já nas companhias, não há solidariedade entre os acionistas pela integralização do capital social: a lei determina a realização do capital e a responsabilização individual pela integralização, de acordo com a exata estimação dos bens conferidos ao patrimônio da empresa. Então, na hipótese de o sócio empreendedor não cumprir com a integralização das suas ações, o sócio investidor pode buscar judicialmente a execução dessa obrigação societária.

O 2º Censo Brasileiro da Indústria de private equity venture capital,[3] realizado pela Fundação Getúlio Vargas, indica que a sociedade anônima fechada é o tipo legal mais utilizado para organização desses empreendimentos (68,3% dos casos), seguida da sociedade limitada (21,7%) e da companhia aberta (10%). De qualquer modo, seja sociedade limitada ou sociedade anônima, é essencial que exista uma cláusula de retrovenda, ou seja: o sócio investidor, quando suas quotas ou ações alcançarem um determinado valor, deverá revendê-las ao sócio empreendedor. Se a estrutura societária não mudou com a entrada do sócio investidor (por exemplo, se a startup era uma limitada e o investidor não exigiu a constituição de uma sociedade anônima), essa cláusula deve constar de um acordo de quotistas ou acionistas; se a estrutura mudou e foi celebrado um novo contrato ou estatuto social, é ideal que a cláusula já seja nele inserida.

Resumo da realização do venture capital em uma startupstartup na forma de empreendedor individual ou pessoa jurídica encontra um fundo interessado em realizar aportes financeiros e em participar diretamente da atividade econômica exercida, a fim de otimizar a empresa, valorizar suas quotas ou ações e, enfim, revendê-las à startup. Em caso de manutenção da estrutura societária, é celebrado aditivo de alteração do estatuto ou do contrato social para ingresso do novo sócio; em caso de alteração da estrutura societária, é celebrado um novo contrato ou estatuto social. Confecção de acordo de quotistas ou acionistas prevendo a cláusula de retrovenda, discriminando os valores a serem aportados pelo sócio investidor e estabelecendo os limites de interferência que o sócio investidor exercerá sobre a atividade econômica.

 

O mútuo conversível

O mútuo conversível é um aporte financeiro na startup a título de empréstimo, ou seja, realizado mediante contrato cível de mútuo. O diferencial é a possibilidade da pessoa natural ou jurídica que disponibilizou os valores se tornar detentor de percentual pré-determinado da sociedade empresária no futuro. Daí, o nome: é um empréstimo que, para ser quitado, será posteriormente convertido em participação societária em prol do mutuante. Gera direitos de ordem creditícia (art. 586 e seguintes do Código Civil) e de conversão em participação, fazendo com que a participação societária seja pagamento propriamente dito, e não mera garantia.

Há duas grandes vantagens para a startup nessa modalidade de investimento. A primeira é a desnecessidade de alteração da estrutura societária, já que a quantia ingressará no patrimônio da empresa como empréstimo, sem mudanças no quadro de sócios logo no estágio inicial das atividades. Sem a participação direta do mutuante no cotidiano da empresa, a startup é livre para gerenciar o negócio e correr os riscos necessários, o que também significa vantagem para o investidor: como ele ainda não é parte da empresa, eventuais prejuízos nesse meio-tempo não lhe causam impacto algum – inclusive, o contrato de mútuo pode conter uma cláusula afirmando que a conversão em participação societária é opcional para o mutuante, podendo ele optar por receber de volta a quantia emprestada.

A segunda é referente à tributação. O valor aportado não será considerado receita bruta para fins de enquadramento como micro e pequena empresa (art. 61-A, § 5º, da Lei Complementar nº 123), permitindo que a startup permaneça em regimes tributários simplificados e possivelmente mais benéficos (caso do Inova Simples).

Além disso, como expusemos até agora, o aporte de capital em uma sociedade pode ser realizado de várias maneiras, entre as quais se destacam, para os fins de identificação dos tributos aplicáveis: i) o aporte mediante subscrição/integralização do capital social ou aquisição de participação societária; e ii) o aporte mediante operação de crédito – um mútuo. No primeiro caso, há a possibilidade da ocorrência de ágio, que é a diferença positiva entre o valor do aporte no momento da aquisição da participação e o valor contabilizado das quotas ou ações. A fim de evitar a tributação por meio do Imposto de Renda, é interessante que seja firmado termo de transformação societária para a sociedade anônima fechada, dado que, enquanto sociedade limitada, o ágio compõe a base de cálculo do IR e da CSLL. Por outro lado, o art. 38 do Decreto nº 1.598/77 estabelece que não compõe o lucro real o crédito referente ao ágio na emissão de ações por preço superior ao valor nominal. Assim, apesar de ser uma modalidade societária relativamente custosa por exigir o cumprimento de mais obrigações acessórias, é uma alternativa interessante a depender do estágio da startup.

Resumo da realização do mútuo conversível em uma startupstartup na forma de empreendedor individual ou pessoa jurídica encontra pessoa natural ou jurídica interessada em realizar aportes financeiros e, futuramente, em participar diretamente da atividade econômica exercida. É celebrado um contrato cível de mútuo, prevendo como possibilidade de pagamento a conversão do valor em participação societária. Embora não seja obrigatório, recomenda-se a confecção de um memorando de entendimento fixando os direitos e deveres do investidor na sociedade em caso de conversão do empréstimo em participação societária.

 

Martina Varejão Gomes

Advogada. Especialista em direito tributário pelo IBET. Especialista em gestão tributária e sucessória pela Fucape.

 

Lorenzo Caser Mill

Advogado

 

Referências


[1] Tradicionalmente, são pessoas físicas. Porém, a Lei Complementar nº 155, de 2016, definiu o investidor-anjo também como pessoa jurídica e introduziu o “contrato de participação”, que é o instrumento padrão a ser adotado pelos fundos e demais sociedades que almejem esse tipo de investimento. Então, o investidor-anjo que não for pessoa física deve celebrar o contrato de participação, regido precipuamente pelo microssistema da LC nº 155.

[2] https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2132/tde-20012015-162731/pt-br.php

[3] https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8419