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Imóvel em construção pode ser caracterizado como bem de família
A Lei nº 8.009/90 confere a proteção de impenhorabilidade ao imóvel de residência do casal ou da entidade familiar, independentemente da natureza da dívida. A proteção tem como fundamentos constitucionais o direito à moradia e o princípio da dignidade da pessoa humana, ressalvadas as exceções expressamente previstas nos arts. 3º e 4º da referida Lei.
Nos termos do art. 5º da Lei nº 8.009/90, considera-se residência, para os efeitos de impenhorabilidade, o único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar como moradia permanente. Por sua vez, na hipótese de o casal possuir mais de um imóvel como residência, será impenhorável aquele de menor valor, exceto se outro tiver sido registrado com essa finalidade no cartório de registro de imóveis (parágrafo único do art. 5º).
No entanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ampliou a abrangência da Lei até mesmo para as pessoas solteiras, separadas e viúvas, conforme entendimento consolidado no enunciado da Súmula nº 364:
O conceito de impenhorabilidade do bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.
A impenhorabilidade do bem de família é constantemente discutida nos Tribunais, em razão das diversas situações específicas que podem ocorrer e, obviamente, o legislador não tem condições de prever.
A título de exemplo, passa-se a comentar sobre o julgamento do Recurso Especial nº 1.960.026 – SP, no qual foi discutido o tema objeto do texto.
A controvérsia do Recurso Especial nº 1.960.026 – SP e a decisão da Quarta Turma do STJ
Recentemente, a Quarta Turma do STJ analisou a possibilidade de um imóvel ainda em construção ser considerado como bem de família para fins de obter o benefício da impenhorabilidade, ao julgar o Recurso Especial nº 1.960.026 – SP, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
O TJSP deliberou que o imóvel na fase de construção não pode ser enquadrado no conceito de residência previsto na Lei nº 8.009/90, uma vez que seria impossível assimilar “expectativas futuras às normas protetivas do bem de família”. De acordo com o Tribunal, a efetiva fixação de residência no imóvel seria um requisito indispensável para caracterização do bem de família.
Nas razões do Recurso Especial, interposto com fundamento no art. 105, inciso III, alínea “c”, da CRFB/1988, objetivando a reforma da decisão para ser conferida a proteção de impenhorabilidade, argumentou-se que o imóvel é a única propriedade dos recorrentes e está em fase de construção para ser uma futura moradia familiar.
À unanimidade, em outubro de 2022, a Quarta Turma do STJ deu parcial provimento ao Recurso Especial, nos termos do voto do Ministro Relator Marcos Buzzi, para cassar o acórdão recorrido e determinar o retorno dos autos à Corte de origem, a fim de que o Tribunal examine novamente o agravo de instrumento dos recorrentes, à luz da Lei nº 8.009/1990, afastando a necessidade de que os interessados residam no bem e que este já esteja edificado.
Os fundamentos do Ministro Relator
Em sede de julgamento no STJ, o Ministro Relator, acompanhado integralmente por seus pares, consignou que a interpretação das instâncias ordinárias diverge do disposto na Lei nº 8.009/1990. Segundo detalhou em seu voto, “as hipóteses permissivas da penhora do bem de família devem receber interpretação restritiva”, não podendo o julgador criar novas hipóteses de restrições à proteção legal de impenhorabilidade.
Além disso, citou precedente da 3ª Turma do STJ no sentido de que
O fato de se tratar de terreno não edificado é circunstância que, por si só, não obsta sua qualificação como bem de família, na medida em que tal qualificação pressupõe a análise, caso a caso, da finalidade realmente atribuída ao imóvel (interpretação teleológica das impenhorabilidades)”.
À vista disso, também destacou que a proteção da impenhorabilidade alcança até mesmo o bem de família indireto (geralmente objeto de contrato de locação e consistindo em fonte de renda para a subsistência da família), conforme enunciado da Súmula 486 do STJ:
É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.
Analisando o caso, consignou que:
(…) ainda que não esteja a unidade habitacional pronta – por estar em etapa preliminar de obra, sem condições para qualquer cidadão nela residir -, fica excluído da constrição judicial. A situação econômico-financeira vivenciada por boa parte da população brasileira evidencia que a etapa de construção imobiliária, muitas vezes, exige anos de árduo esforço e constante trabalho para a sua concretização, para fins residenciais próprios ou para obtenção de frutos civis voltados à subsistência e moradia em imóvel locado.
Desta forma, decidiu por afastar o requisito da imprescindibilidade do estabelecimento da residência no bem, como fez o TJSP, ressaltando a possibilidade de que um imóvel em construção seja enquadrado como residência, devendo ser observada a sua finalidade e se é o único imóvel do casal.
Porém, entendeu ao final que não era possível ao STJ reconhecer a impenhorabilidade do imóvel em questão de plano, porquanto as instâncias anteriores deixaram de analisar as demais circunstâncias, sobretudo se o imóvel de fato era o único do casal.
Desse modo, sendo inviável o exame de fatos e provas no âmbito do STJ, determinou o retorno dos autos ao Tribunal de origem.
Conclusão
Embora o acórdão citado não seja um precedente vinculante, a decisão tem grande força persuasiva e reforça um entendimento jurisprudencial que busca a maior proteção possível do bem de família, para dar efetividade à Lei nº 8.009/1990 e aos direitos fundamentais dos executados.
Nesse sentido, frisa-se que o simples fato de o imóvel não ser edificado, por si só, não é suficiente para afastar a proteção legal de impenhorabilidade.
Ante o exposto, é perfeitamente possível que um imóvel em construção seja caracterizado como bem de família, desde que preenchidos os demais requisitos, em consonância com o entendimento do STJ.
Matheus Campos Pompermayer Vieira
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)