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Acordo de não persecução penal: três discussões necessárias
1. Introdução
O famoso “pacote anticrime” entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro em 23 de janeiro de 2020 para trazer mudanças em 14 leis, porém seus impactos mais relevantes são claramente no Código Penal e no Código de Processo Penal.
Dentre as alterações, há normas que aumentam o rigor penal e outras que diminuem[1], sendo a inovação redutora mais relevante a que incluiu no CPP o chamado “acordo de não persecução penal” (ANPP), medida que se insere no Brasil na linha do que comumente se denomina “justiça penal negocial”, tal como já acontece em certa medida nos institutos da transação penal, suspensão condicional do processo e colaboração premiada.
É verdade que acordos para não oferecer denúncia já vinham sendo utilizados há alguns anos no Brasil, sendo marcantes para tanto as resoluções 181/2017 e 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Eis uma nítida influência do sistema judicial norte-americano, no qual se utiliza amplamente o “plea bargaining”, de modo que um acordo entre o órgão acusador (prosecutor) e o acusado visa evitar os inconvenientes de um longo e custoso processo. Para se ter uma noção do quanto isso é relevante nos EUA, estima-se que mais de 90% dos casos penais naquele país sejam encerrados utilizando essa ferramenta de negociação (Lopes Jr., 2021).
Se por um lado a pretendida agilização dos procedimentos penais visa o tão sonhado “desafogamento” da justiça penal brasileira, não são poucos os autores que nos alertam para os riscos inerentes à queda do critérios de “democracia processual”, dados os efeitos de mitigação do contraditório e ampla defesa (Coutinho, 2019). Enfim, a balança entre celeridade e segurança do veredicto pode estar sendo ameaçada por um “Direito penal das consequências” (Costa et al., 2019, p. 250).
Pois bem, o novo instituto está disposto no art. 28-A do CPP e seus 14 parágrafos. Entre os vários pontos interessantes da nova legislação, destacaremos três que parecem merecer maiores cuidados.
2. Três discussões necessárias
2.1. Confissão
Um primeiro ponto espinhoso e que merecerá atenção dos nossos tribunais será a condição de confissão estampada no caput do art. 28. A lei indica: “tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal”. Pois então, o que significa “circunstancialmente”?
Aparentemente, tal critério significa que o investigado deve ter prestado um interrogatório detalhado, narrando elementos suficientes a confirmar a materialidade e autoria do ato em questão, deixando assim esclarecidos todos os pontos necessários para o convencimento do órgão acusatório sobre a existência de justa causa em relação ao declarante.
Mas há situações que podem gerar algum embaraço, sobretudo quando o réu invocar excludentes de ilicitude ou excludentes de culpabilidade, bem quando fizer menção a outras pessoas envolvidas em concurso de pessoas.
De acordo com entendimento pacificado no STJ[2], aceita-se a atenuante de expressa no art. 65, III, “d”, do CP mesmo quando o réu confessou parcialmente o crime, como também nos casos em que a confissão veio acompanhada de alegação de excludentes, quaisquer delas. É de se esperar que o mesmo entendimento seja aplicado ao ANPP, cabendo afastar o acordo quando a confissão apenas visava o benefício do instituto despenalizador.[3]
Mas outra hipótese curiosa parece ser a envolvendo a criminalização de terceiros. No sistema brasileiro não se exige haja colaboração para incriminar outras pessoas quando está na posição de investigado, aliás, sequer é exigido dele que preste juramento de dizer a verdade, pois ali não se aplica o crime de falso testemunho.
Como art. 28 não faz menção à necessidade de que a confissão auxilie a alcançar coautores, tal como ocorre no art. 4 da lei 12.850/13 (colaboração premiada), parece lógico esperar que o caráter “circunstancial” do ato não exija entregar agentes que concorreram no crime.
2.2. Discricionariedade do ministério público
O segundo ponto que os advogados aguardam ansiosamente para uma definição doutrinária e jurisprudencial é acerca da discricionariedade do órgão acusatório sobre a propositura do ANPP. O art. 28 traz em sua redação a palavra “poderá”, gerando uma celeuma aparente.
Enfim, pode-se considerar que o acordo é um direito subjetivo do investigado? Conforme algumas poucas decisões proferidas até o momento, os tribunais tem se encaminhado para fixar a tese de que não. No STF[4], o argumento foi de que a propositura vai depender da “estratégia de política criminal adotada” pelo Ministério Público. No STJ, considerou-se haver liberdade do órgão acusatório para avaliar as peculiaridades do caso concreto: “a redação do art. 28-A do CPP preceitua que o Ministério Público poderá e não deverá propor ou não o referido acordo, na medida em que é o titular absoluto da ação penal pública, ex vi do art.0-0 129, inc. I, da Carta Magna”.[5]
Os tribunais merecem melhor jurisprudência. Quando se está falando de ato persecutório, toda a lógica das legislações penais se sustentam no sentido de imposição de balizas ao poder punitivo do Estado. A existência de direito para regular o jus puniendi sempre teve o único condão de estabelecer “diques de contenção” (Zaffaroni, 2003, p. 156), de maneira que uma legislação penal tem razão de ser apenas enquanto impõe restrições.
É a lógica do sistema, produzir normas punitivas para definir limites, tetos. No caso, temos uma norma de natureza híbrida, pois apesar de ser de caráter procedimental, gera efeitos materiais de extinção de punibilidade. Logo, estamos falando de um instituto que tem o condão de evitar a punição de um indivíduo, definição esta que é de caráter público e não pode ser entendida como mera faculdade do representante acusatório. Nos Estados democráticos de Direito, a política criminal de um país está submetida à lei, sendo a forma legal um direito do investigado.
Também não há de se apegar à palavra “pode” como um indicativo de faculdade. A mesma palavra é usada nas causas de diminuição do art. 121, §1º, e do art. 155, §2º, ambos do CP, sendo absolutamente unânime na doutrina e jurisprudência que sua aplicação não é discricionária.
Portanto, estando presentes os requisitos legais para o ANPP, o representante ministerial está sim obrigado a propor, podendo apenas possuir alguma margem de liberdade para escolher as condições que considera mais adequadas e proporcionais para o caso em tela (Aury, 2020, p. 221). Não havendo a proposta, o juiz de direito não deve receber eventual denúncia oferecida.[6]
2.3. Limites da recusa do magistrado
Por fim, outra questão que merece atenção são os limites que o magistrado possui para rejeitar um ANPP. No texto do art. 28, §5º, indica-se que ele pode rejeitar se considerar “inadequadas, insuficientes ou abusivas” as condições estabelecidas.
Nenhum problema quanto aos termos “inadequadas” e “abusivas”, pois a fiscalização das condições estabelecidas é obviamente competência do juiz de direito, devendo não referendar os pactos que afrontem os princípios da legalidade e da intervenção mínima. Não custa lembrar, a lógica do sistema penal é imposição de limites máximos ao poder de punir.
Todavia, refutar o acordo por o considerar “insuficiente” não parece razoável, pois isto violaria nitidamente a lógica do sistema acusatório. A se lembrar, para aqueles que consideravam a regulação constitucional insuficiente para remeter a este sistema, agora o CPP conta com o art. 3º-A.[7]
Não sendo o magistrado “parte” no acordo, cabe a ele exclusivamente velar pela sua lisura legal, restando sem sentido a possibilidade de sua inserção nos termos do acordo a fim de requerer maior rigor nas cláusulas pactuadas (Marques, 2021). Sendo expresso na constituição a atribuição do ministério público como parte do processo (titular da ação), é de se esperar que o STF reconheça a inconstitucionalidade do termo “insuficiente”.
Em suma, há muitos aspectos do ANPP a serem discutidos, a fim de encontrar sua melhor interpretação sistemática. Eis apenas alguns pontos críticos que chamam a atenção de imediato e que parecem merecer grande cautela dos intérpretes. Espera-se que o instituto encontre o melhor acolhimento na jurisprudência brasileira e sirva de fato para uma redução relevante do número de penas em nosso país, ao invés de figurar como mais um veículo de “expansão da rede”.
Clécio Lemos
Advogado. Pós-doutor em Direito pela Columbia University; Doutor pela PUC-Rio com período sanduíche na Università degli Studi di Padova
[1] “Trata-se de inovação que objetiva alcançar a punição célere e eficaz em grande número de práticas delituosas, oferecendo alternativas ao encarceramento e buscando desafogar a Justiça Criminal, de modo a permitir a concentração de forças no efetivo combate ao crime organizado e às infrações penais mais graves.” (PL 10.372/2018, p. 33)
[2] AgRg no AREsp 85063/SC.
[3] Por esse motivo, o STJ já anulou um acordo firmado no ano de 2020: “No caso em análise, a despeito de confessar a infração penal perante o Juízo, o paciente afirmou que o fazia apenas para ter acesso ao acordo de não persecução penal, mas que não era o autor da infração penal. Tal afirmação do paciente não preenche os requisitos do art. 28-A, do CPP, e afasta a possibilidade de homologação do acordo de não persecução penal.” (HC 636.279/SP)
[4] HC 191.464-AgR/SC.
[5] AgRg no RHC 130.587/SP.
[6] “Nesse ponto, cabe a reflexão da analogia com instituto semelhante, a suspensão condicional do processo, cuja legitimidade de proposta igualmente é do MP, no qual o juiz pode remeter de ofício ao órgão superior do MP caso tenha sido negado na primeira instância, aplicando o artigo 28 do CPP, conforme entendimento sumulado pelo STF no Verbete nº 696.” (Avelar et al., 2021)
[7] Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Bibliografia
AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de; MATTOS, Rodrigo Castor de. Acordo de não persecução penal: a atuação ex officio do Poder Judiciário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-05/opiniao-anpp-atuacao-ex-officio-poder judiciario#_ftnref14. Acesso em: 13 de maio de 2021.
COSTA, Victor Cezar Rodrigues da Silva; RIBEIRO, Leo Maciel Junqueira. Acordo de não persecução penal: um caso de direito penal das consequências levado às últimas consequências. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 161. Ano 27. p. 249-276. São Paulo: Ed. RT, Novembro 2019.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anunciado. Boletim do IBCCRIM, ano 27, n. 317, 2019.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
LOPES JR., Aury. Adoção do plea bargaining no projeto “anticrime”: remédio ou veneno? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-22/limite-penal-adocao-plea-bargaining-projeto-anticrimeremedio-ou-veneno. Acesso em: 13 de maio de 2021.
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Acordo de não persecução: um novo começo de era (?). Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 28, n. 331, p. 9-12, jun.. 2020.
OLIVEIRA, Marcondes Pereira de. Acordo de Não Persecução Penal: repressão/prevenção ao crime e confissão do investigado. Revista Brasileira de
Ciências Criminais. vol. 178. ano 29. p. 311-333. São Paulo: Ed. RT, abril 2021.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003.