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29/03/2021

Acordo de não persecução penal e crimes empresariais

Em 23 de janeiro de 2020 entrou em vigor no Brasil a lei 13.964/19, que acabou sendo denominada popularmente de “lei anticrime”. Ela foi o resultado de um projeto liderado pelo então ministro da justiça Sérgio Moro ao longo do ano de 2019, tendo como objetivo promover uma série de alterações normativas principalmente no campo da justiça penal.

Basicamente, a nova legislação promoveu mudanças em 14 leis, porém seus impactos mais relevantes são claramente no Código Penal e no Código de Processo Penal. Dentre as alterações, há normas que aumentam o rigor penal e outras que diminuem, pois o objetivo era fazer com que o poder judiciário perdesse menos tempo com casos leves e desse maior ênfase aos crimes graves.

Por esse motivo, pode-se ler expressamente no projeto de lei (PL 10.372/2018) que se iniciou na Câmara dos Deputados: “trata-se de inovação que objetiva alcançar a punição célere e eficaz em grande número de práticas delituosas, oferecendo alternativas ao encarceramento e buscando desafogar a Justiça Criminal, de modo a permitir a concentração de forças no efetivo combate ao crime organizado e às infrações penais mais graves.” (p. 33)

Dentre as inovações no campo da diminuição do rigor penal, sem dúvidas a mais relevante é a que incluiu no Código de Processo Penal o chamado “acordo de não persecução penal” (ANPP), medida que se insere no Brasil na linha do que comumente se denomina “justiça penal negocial”, tal como já acontece em certa medida nos institutos da transação penal, suspensão condicional do processo e delação premiada.

Eis uma nítida influência do sistema judicial norte-americano, o qual se utiliza amplamente o “plea bargaining”, de modo que um acordo punitivo entre o órgão acusador (prosecutor) e o acusado pode evitar os inconvenientes de um longo e custoso processo. Para se ter uma noção do quanto isto é relevante nos EUA, estima-se que mais de 90% dos casos penais naquele país sejam encerrados utilizando essa ferramenta de negociação.

É verdade que acordos para não oferecer denúncia já vinham sendo utilizados há alguns anos no Brasil, sendo marcantes para isso as resoluções 181/2017 e 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Todavia, dado o grande questionamento sobre a ausência de legalidade dessa iniciativa e por divergência com o tradicional princípio da “obrigatoriedade da ação penal” (arts. 24 e 42 do Código de Processo Penal), houve por bem o congresso atuar em definitivo para dar status de lei a estes tipos de negociação.

Pois bem, o novo instituto do “acordo de não persecução penal” está disposto no art. 28-A do CPP e seus 14 parágrafos. Em síntese, pode-se dizer que a lei indica quais são os requisitos para sua aplicação e as cláusulas que podem ser impostas. Caso tudo ocorra devidamente, o investigado cumprirá certas condições e ao fim terá sua extinção de punibilidade, sem que para tanto não seja necessário sequer o início do processo penal.

Dentre os requisitos para que uma pessoa possa ser beneficiada pelo acordo, destaca-se a necessidade de que: 1) o investigado confesse que praticou o crime; 2) que o crime seja não seja com violência ou ameaça; 3) que o crime seja punível com pena mínima inferior a 4 anos; 4) que o investigado não seja reincidente nem criminoso habitual; 5) que o crime não seja de violência doméstica ou praticado contra mulher por razões de gênero.

Considerando isso, é possível usar o ANPP para um grande número de crimes existentes na legislação brasileira, dentre eles os crimes empresariais. Por exemplo, pode ser o caso dos crimes de sonegação fiscal (art. 1 da lei 8.137/90), crime de formação de cartel (art. 4 da lei 8.137/90), apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código Penal), descaminho (art. 334 do Código Penal) e crimes ambientais (lei 9.605/98).

Tendo finalizado a investigação pré-processual e existindo os requisitos acima descritos, caberá ao representante do órgão acusador (promotor de justiça ou procurador da república) negociar com o réu a possibilidade do acordo de não persecução penal, que poderá ter como cláusulas a obrigatoriedade de: 1) reparar o dano ou restituir a coisa à vítima; 2) renunciar aos bens que foram instrumentos, produto ou proveito do crime; 3) prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas; 4) efetuar pagamento a entidade pública ou de interesse social; 5) cumprir outras condições que sejam proporcionais ao crime praticado.

Para que o acordo seja aceito pelo juiz, é fundamental a presença de um advogado para dar suporte à pessoa investigada. O acompanhamento de um advogado é essencial neste momento para garantir que o acordo seja válido, pois somente assim se considera que a pessoa foi devidamente informada dos seus direitos e teve garantido o acordo mais vantajoso.

Principalmente considerando que a pessoa que pactuou um ANPP irá cumprir uma punição, é essencial a presença de um advogado criminalista para lutar por um acordo justo, visando garantir a legalidade da medida e evitar excessos coercitivos. Além disso, para atender aos propósitos da lei, é essencial que haja uma negociação interativa, de maneira que o investigado se faça de fato representado por uma voz técnica ativa, garantindo um pacto proporcional ao crime praticado.

Vale destacar que os riscos aqui são relativamente maiores do que seria no fim do processo penal, pois os acordos são realizados antes do início do processo, quando a pessoa ainda não teve oportunidade de exercer seu direito de produzir provas e apresentar defesa técnica escrita.

O Superior Tribunal de Justiça (HC 607.003-SC) e o Supremo Tribunal Federal (HC 191464) tem decidido até o momento que o ANPP só é possível antes da denúncia, portanto, o investigado tem pouca possibilidade de enfrentar as provas colhidas em fase de investigação preliminar (geralmente inquérito policial) e argumentar em favor próprio. Não se pode esquecer que na fase de investigação não há as mesmas garantias existentes no processo, tais como o contraditório e a ampla defesa.

Portanto, juntamente com o “acordo de não persecução cível” (ANPC) criado para os casos de improbidade administrativa, o acordo de não persecução penal vem se somar no sistema jurídico brasileiro como uma das possibilidades de agilização procedimental. Sendo o ANPP para crimes mais leves tais como os empresariais, cujas sanções são mais brandas, a justiça negocial pode ser interessante a depender do caso. Trata-se de direito pertencente ao investigado que, desde que bem amparado por um advogado competente, pode ser altamente vantajoso.

 

Clécio Lemos

Pós-doutor em Direito pela Columbia University.

Advogado criminal da FPSV.