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25/04/2021

Preterição de candidatos aprovados para o cadastro de reserva e direito subjetivo à nomeação: interpretando o acórdão do RE 837.311/PI

Como é de conhecimento de todos aqueles que participam de concursos públicos nas mais diversas áreas, os respectivos editais em geral preveem, ao lado das vagas a serem providas, a formação de cadastro de reserva. Com isso, há a expectativa dos participantes de que, mesmo não sendo aprovados dentro do número de vagas, possam ser convocados pela Administração Pública caso surja a necessidade.

É cediço, porém, que, via de regra, os candidatos aprovados para o cadastro de reserva não detêm direito adquirido à nomeação, mas, tão somente, nutrem expectativa de direito de que possam ser convocados durante o prazo de validade do certame. Ordinariamente, direito adquirido à nomeação pertence, apenas, àqueles que tenham sido aprovados dentro das vagas previstas no edital.

Neste contexto, entende-se que, de regra, a Administração Pública possui discricionariedade para convocar, ou não, os candidatos aprovados fora do número de vagas, conforme as necessidades surgidas ao longo do prazo de validade e as suas possibilidades orçamentárias.

Esta ideia, inclusive, vem fazendo com que, nos últimos anos, os editais dos concursos em geral prevejam um menor número de vagas se comparado ao que ocorria em anos anteriores, justamente para que a Administração possa optar, conforme sua conveniência e oportunidade, por nomear ou não parte dos aprovados.

Como se sabe, contudo, a jurisprudência dos tribunais brasileiros há tempos vem entendendo que a referida discricionariedade não é, de modo algum, absoluta.

Há situações nas quais, em decorrência de manifesta violação aos princípios da eficiência, da boa-fé, da moralidade, da impessoalidade e da proteção da confiança, entende-se que passa a ser dever da Administração Pública nomear os candidatos constantes do cadastro de reserva.

Nesses casos, a mera expectativa de direito convola-se em direito subjetivo à nomeação.

Esta situação foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, em regime de repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 837.311/PI. Desde então, o referido precedente vem orientando a jurisprudência dos tribunais brasileiros a respeito do tema.

Da análise da ementa daquele julgado e, sobretudo, dos votos que levaram à conclusão do Tribunal Pleno do STF, verifica-se que, de fato, na linha do que se disse acima, o candidato aprovado fora do número de vagas não tem, de regra, direito subjetivo à nomeação, estando a sua convocação no âmbito de discricionariedade da Administração Pública.

Essa discricionariedade, porém, deixa de existir, fazendo surgir um direito subjetivo à nomeação do candidato, quando caracterizada “preterição arbitrária e imotivada por parte da administração”.

Essa preterição, por sua vez, fica caracterizada quando o “comportamento tácito ou expresso do Poder Público” for capaz de revelar a “inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de validade do certame”.

A este respeito, vale a leitura de trecho do voto do Eminente Relator, Ministro Luiz Fux, que, diante do consenso alcançado, resultou no item 7 da ementa do acórdão:

“Senhor Presidente, chegamos a uma conclusão, a várias mãos, porque submeti essa ementa da repercussão geral a todos os colegas que, naquela oportunidade, tinham algumas dúvidas, e houve um consenso, cujo texto é o seguinte, e que depois passo às mãos de Vossa Excelência.

O surgimento de novas vagas ou a abertura de novo concurso para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do certame anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos aprovados fora das vagas previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de preterição arbitrária e motivada por parte da Administração, caracterizada por comportamento tácito ou expresso do Poder Público, capaz de revelar a inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de validade do certame, a ser demonstrada de forma cabal pelo candidato.

Assim, o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso público exurge das seguintes hipóteses:

1- Quando a aprovação ocorrer dentro do número de vagas previsto no edital – cito Recurso Extraordinário do Ministro Gilmar Mendes;

2- Quando houver preterição na nomeação por inobservância da ordem de classificação ex vi da Súmula 15;

3- Quando surgirem novas vagas ou for aberto novo concurso durante a validade do certame anterior e ocorrer a preterição de candidato de forma arbitrária e motivada por parte da Administração nos termos acima.

Essa é a proposta a que cheguei, depois de submetê-las aos colegas que tinham dúvida, para encerrar aquele julgamento”.

Como se vê, restou definido, naquela ocasião, que são três as hipóteses nas quais se pode falar em direito subjetivo do candidato à nomeação:

  1. Quando for ele aprovado dentro do número de vagas;
  2. Quando houver preterição na nomeação por desrespeito à ordem de nomeação;
  3. Quando surgirem novas vagas ou for aberto novo concurso durante o prazo de validade do certame, e ocorrer a preterição arbitrária e imotivada do candidato. Essa última, por sua vez, caracteriza-se, nos termos da decisão, pelo comportamento tácito ou expresso do Poder Público, capaz de revelar a inequívoca necessidade de nomeação.

É exatamente esta última hipótese que nos interessa mais de perto neste momento, que, devidamente interpretada, revela a existência de direito à nomeação do candidato aprovado no cadastro de reserva quando verificadas as seguintes condições:

Em primeiro lugar, é necessário que, durante o prazo de validade do certame (i.1) surjam novas vagas, ou (i.2) seja aberto novo concurso.

Em segundo lugar, verificada umas dessas hipóteses, é necessário, ainda, que tenha ocorrido a (ii) preterição arbitrária e imotivada do candidato. E essa, por sua vez, fica caracterizada quando, (ii.1) por comportamento expresso, ou (ii.2) por comportamento tácito, ficar revelada a inequívoca necessidade de nomeação.

Nessa linha, é interessante conhecer a situação concreta analisada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE nº 837.311/PI.

Naquela ocasião, o STF confirmou acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí que julgou procedente mandado de segurança para reconhecer o direito subjetivo à nomeação de candidatos aprovados para concurso público da Defensoria Pública Estadual fora do número de vagas.

No caso, a razão que levou o STF a manter o juízo de procedência do mandado de segurança foi o fato de que, além de existir cargos vagos e de ter sido aberto novo concurso, a própria instituição havia reconhecido a necessidade de nomeação de novos Defensores Públicos.

Isso teria ocorrido em manifestação do Defensor Público-Geral em matéria jornalística e, ainda, em Resolução do Conselho Superior da Defensoria Pública.

A este respeito, vejamos trecho do voto do Min. Luiz Fux, que ilustra bem a situação então analisada:

“Na exordial, os Impetrantes demonstraram que a Lei Complementar n.º 59, que instituiu a Defensoria Pública do Estado do Piauí, estabeleceu, em seu artigo 31, que haverá 152 defensores públicos de 1º categoria. E que, naquele momento, a Defensoria contava com apenas 29 defensores.

Ademais, o concurso que os candidatos prestaram previu, apenas, poucas vagas, de maneira que a necessidade para a nomeação dos autores seria patente. Como se isso não bastasse, o Defensor Publico-Geral sinalizou, em matéria veiculada no Jornal o Dia de 08 de março de 2008, antes, portanto, do término da validade do processo seletivo, a necessidade de novos concursos para defensores públicos. Logo em seguida, em 22/08/2008, o Conselho Superior de Defensoria Pública editou a Resolução n° 19/2008 com o seguinte teor:

Considerando o que ficou resolvido na reunião com o Excelentissimo Governador do Estado do Piaui, realizada no Palácio de Karnak em agosto de 2.007, ocasião que foi apresentado pelo Defensor Publico-Geral e pela Subdefensora Publica-Geral do Estado, bem como por outros Diretores desta Instituição, o Projeto de Regionalização da Defensoria Publica, deveriam ser nomeados 40 (quarenta) novos Defensores Publicos, sendo que 28 (vinte e oito) ate março de 2008 e 12 (doze) ate o ano de 2009.

Constata-se, dessarte, que, menos de seis meses após o término da validade do concurso em tela, a própria Defensoria Pública do Estado do Piauí reconheceu, expressamente, que deveriam ser nomeados 40 defensores. A instituição não poderia, portanto, ter deixado escoar o prazo do concurso sem nomear os recorridos, mormente diante do reconhecimento, em reunião entre os representantes da Defensoria-Pública e o Governador do Estado do Piauí ocorrida em 2007, de que a regionalização da Defensoria justificaria a referida nomeação. Aqui, temos uma excepcional hipótese em que a própria instituição se autolimitou na discricionariedade quanto ao momento adequado para a nomeação. Acertada, portanto, o entendimento do TJ do Piauí que entreviu o direito subjetivo de nomeação dos recorridos diante dessa seqüência de circunstâncias: comprovação da existência de vagas de Defensor Público, a declaração do Defensor Público-Geral da necessidade de novo concurso e a Resolução que, ainda que exarada logo após o término da validade do concurso, já previa a necessidade, desde 2007, desses novos defensores.”

Como fica claro, o Supremo Tribunal Federal definiu que a manifestação inequívoca da Administração Pública no sentido de que há necessidade de prover os cargos vagos existentes é suficiente para caracterizar preterição, que, somada a outros requisitos, faz surgir o direito subjetivo do candidato à nomeação.

O referido julgado, considerando o texto do art. 927, inciso V, do Código de Processo Civil, configura precedente vinculante, de aplicação obrigatória por todos os demais tribunais de nosso país.

Finalmente, é importante alertar que esta não é a única hipótese em que a jurisprudência vem considerando haver preterição dos candidatos aprovados para o cadastro de reserva, de modo a fazer surgir o direito subjetivo à nomeação.

Assim, por exemplo, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho tem considerado que a preterição dos candidatos aprovados em cadastro de reserva fica configurada diante das seguintes situações, bem exemplificadas no recente julgamento do AIRR 0010861-27.2017.5.03.0071, pela Oitava Turma:

  1. Contratação de comissionados para o exercício das mesmas funções;
  2. Contratação de trabalhadores terceirizados para o exercício das mesmas funções;
  3. Contratação de trabalhadores temporários para o exercício das mesmas funções, quando não respeitados os requisitos do art. 37, IX da Constituição Federal.

Nesses casos, o que se espera do Poder Judiciário, quando convocado a atuar, é que possa diferenciar, por meio de critérios claros, as situações em que a ausência de nomeação dos candidatos aprovados em cadastro de reserva configura exercício legítimo da competência discricionária da Administração Pública, daquelas em que há a violação dos princípios constitucionais que devem nortear a sua atuação.

 

Thiago Ferreira Siqueira

Advogado formado pela UFES.

Professor dos cursos de Graduação e Mestrado da UFES.

Pós-doutor (UFES), doutor (USP) e mestre (UFES) em direito processual civil.